PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MARIA LUCIA BANDEIRA VARGAS SLASH: A FAN FICTION HOMOERÓTICA NO FANDOM POTTERIANO BRASILEIRO TESE DE DOUTORAMENTO Porto Alegre 2011 MARIA LUCIA BANDEIRA VARGAS SLASH: A FAN FICTION HOMOERÓTICA NO FANDOM POTTERIANO BRASILEIRO Tese apresentada como requisito para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profª Dr. Vera Teixeira de Aguiar Porto Alegre 2011 Esta tese é dedicada às autoras do Potter Slash Fics, um antro on line da melhor qualidade que já vi. AGRADECIMENTOS À Capes, agência financiadora. À Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aos seus professores, pelos ensinamentos e pela atenção. À minha orientadora, Dr. Vera Teixeira de Aguiar, pela coragem na aceitação em orientar este estudo e pela liberdade que me deu em meus passos, fator fundamental na realização do mesmo. RESUMO O presente estudo apresenta um subgênero da fan fiction, gênero de histórias ficcionais escritas por fãs – donde o nome utilizado, oriundo das palavras em língua inglesa fan e fiction – de forma totalmente voluntária, criadas com base em outras obras de ficção já existentes que são, no mais das vezes, produtos da chamada indústria do entretenimento de massa. Essas ficções são postadas, divulgadas e apreciadas pela internet. O subgênero em questão é chamado de slash e compreende histórias nas quais os protagonistas envolvidos em uma trama erótica/romântica são necessariamente do mesmo sexo – geralmente do sexo masculino – e a autoria é feminina. O público para o qual essas ficções são escritas também é feminino e em torno da prática se aglutina um grande número de mulheres, tanto no Brasil, como no Exterior. Do que trata a fan fiction slash baseada nos originais da série Harry Potter, escrita pela britânica J.K.Rowling, sua presença em língua portuguesa, onde encontrá-la, quais suas características, que tipo de arte ela inspira e as motivações para o envolvimento com essa escrita, são as questões abordadas nesta pesquisa. É também analisada a teorização de dois pesquisadores norte americanos, que procura compreender as motivações das autoras e leitoras de slash. Esta se baseia na Teoria Evolucionista, aproximando o subgênero slash do romance sentimental, que seria a ficção erótica feminina por excelência. Um pequeno estudo de caso é apresentado, procurando observar a presença, ou não, de elementos do slash em um romance sentimental. Palavras-chave: Fan fiction. Slash. Ficção erótica. Harry Potter. ABSTRACT This study presents a subgenre of fan fiction, a genre of fictional stories written by fans – hence the name derived from words in English, fan and fiction – as volunteers, created upon other existing works of fiction which are, in their majority, produced by the so called mass entertainment industry. They are posted, disseminated and appreciated through the Internet. The subgenre here approached is called slash and includes stories where the protagonists involved in an erotic/romantic plot are necessarily from the same gender – usually male – although the authors are females. The audience for which these fictions are written is also feminine and around the practice is assembled a large number of women both in Brazil and abroad. What a slash fan fiction based on the original Harry Potter series, written by British author JK Rowling, is; its presence in the Portuguese language; where to find it; what its characteristics are; what kind of art it inspires; and the reasons for involvement with such writing, are the questions addressed in the research here presented. It is also analyzed the theory that search to explain the slash authors and readers‟ motivations to such involvement having the Evolutionist Theory as its basis, establishing an approximation between this sub genre and mainstream romances, supposedly the main female erotica. A short study observing the presence of slash elements in one of the mainstream romances is also presented. Key words: Fan fiction. Slash. Erotica. Harry Potter. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 1 – Busca no Fanfiction.net ..................................................................................... 38 Ilustração 2 – Desafio da Infidelidade...................................................................................... 57 Ilustração 3 - Restricted Section.org......................................................................................... 59 Ilustração 4 - “Aviso” ...............................................................................................................60 Ilustração 5 - Mula-sem-cabeça e saci-pererê ..........................................................................66 Ilustração 6 - Potter Slash Fics .................................................................................................74 Ilustração 7 – Vila Sésamo slash.............................................................................................. 75 Ilustração 8 – Como eu vejo .....................................................................................................76 Ilustração 9 – Por você. ............................................................................................................76 Ilustração 10 – Água e vinho....................................................................................................77 Ilustração 11 – Harry and Draco Slash I...................................................................................78 Ilustração 12 – Harry and Draco Slash II .................................................................................78 Ilustração 13 – Harry and Draco Slash III................................................................................79 Ilustração 14 – The Harry Potter Guide to Slash......................................................................83 Ilustração 15 – Harry e Snape – All I ask of you .....................................................................88 Ilustração 16 – James Potter and the Hall of Elders' Crossing Theatrical Trailer .................... 88 Ilustração 17 – When Draco met Harry I ...............................................................................181 Ilustração 18 - When Draco met Harry II...............................................................................182 Ilustração 19 – When Draco met Harry III.............................................................................183 SUMÁRIO LUMMUS ................................................................................................................................ 10 1 OS PRIMÓRDIOS DA FANFICTION..............................................................................16 1.1 A QUESTÃO IDENTITÁRIA PARA O FANFIQUEIRO................................................18 1.2 ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA FAN FICTION ...................................................31 2 “I SOLEMNLY SWEAR I AM UP TO NO GOOD”: A FAN FICTION SLASH.........46 2.1 UMA PITADA DE JEITINHO E UM BOCADO DE MAGIA: ALGUNS EXEMPLOS DE SLASH NO BRASIL ..........................................................................................................54 2.2 FANARTES E FANVIDS: “PLEASE LEAVE ALL YOUR CONCEPTS OF NORMALITY AT THE DOOR” ............................................................................................. 72 3 A TRANSGRESSÃO DAS FRONTEIRAS DE GÊNERO E A TEORIA EVOLUCIONISTA ................................................................................................................90 4 O ROMANCE COR DE ROSA E O SLASH - ESTUDO DE CASO ........................... 142 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 158 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 167 ANEXO A – LIVE JOURNAL - FOSFF............................................................................174 ANEXO B – TO MY DEAREST FRIENDS ......................................................................177 ANEXO C - WHEN DRACO MET HARRY ....................................................................181 LUMMUS1 O espanto e a curiosidade frente a universos desconhecidos parecem ser, realmente, as forças que forjam a existência do novo. Assim é com a temática desta tese de doutoramento e assim foi com a dissertação de mestrado que a precede. O tema das fan fictions (que podem ser grafadas fan fictions ou fanfictions, ou ainda fanfics ou simplesmente fics, vocábulos tão pertinentes ao fandom nacional, que optamos por não os grafarmos como estrangeiros), suas origens, características no fandom nacional e internacional, bem como o perfil dos envolvidos e suas motivações para o engajamento com tal prática foi nosso objeto de estudo durante a realização de mestrado em Letras – Estudos Literários, na linha de pesquisa intitulada Formação do Leitor, no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. Aquele estudo resultou de nosso interesse face à declaração de uma aluna de que seu hobby consistia em escrever, madrugada adentro, histórias ficcionais chamadas fan fictions. A dissertação resultante desse estudo, orientada pela Dr. Tania M. K. Rösing e intitulada Do fã consumidor ao fã navegador-autor: o fenômeno fanfiction, foi apresentada à banca no dia primeiro de julho de 2005 e publicada sob o título O Fenômeno Fanfiction: novas leituras e escrituras em meio eletrônico, através da UPF Editora. O livro foi lançado durante a XI Jornada Nacional de Literatura, realizada em agosto daquele ano, tendo obtido uma boa receptividade junto à imprensa e às comunidades de fãs. Recebemos várias manifestações de fãs escritoras e leitoras de fanfics de Harry Potter, inclusive um e-mail2 de uma autora que 1 Significa luz, em Latim, e é o feitiço usado na série Harry Potter, criada por J.K.Rowling, para invocar luz, em momentos de escuridão. Pareceu-nos adequado para a Introdução desta tese, cujo título possivelmente soe um pouco enigmático. 2 Cara Maria Lúcia, acabo de ler na internet que você escreveu uma tese sobre os escritores (ou em maioria escritoras) de fanfictions. Queria te agradecer por isso. Eu comecei as escrever fanfictions com 15 anos de idade pelo profundo amor que nutria pelas revistinhas dos XMen. Não aguentava esperar mês a mês pelas novas publicações e nunca ver o que realmente queria ser publicado. A partir disso, passei a dar vida à (sic) personagens que não eram meus. São 9 anos assim. Hoje tenho 24 e já me sentia um tanto ridícula por ainda estar nessa prática, tão mal vista pelos meus pais ou professores que encaram isso como sub-literatura e perda de tempo. Pior ainda por já ter me formado em História pela UFF. Minha prática acabou se tornando algo feito às escondidas, porém lido por alguns fãs fiéis ao longo dos anos e por outros tantos novos. Mas exatamente como li no resumo de seu trabalho, também passei a escrever histórias minhas com personagens meus e tenho o sonho de ser escritora. Ainda não sei se tenho capacidade. Mesmo assim, agradeço seu trabalho, quero lê-lo de alguma forma. Eu sou exatamente o perfil das escritoras de fics que você analisou. Só não gosto de Harry Potter. Sempre gostei mais de x-men por achar o tema mais adulto, já que trata sobre preconceitos e aceitação pessoal, além de ser recheado de frutíferas histórias românticas. Até mesmo de amores impossíveis, implicados por mutações genéticas que tornam uma pessoa impossibilitada de tocar a outra. 11 tomou conhecimento da existência de nosso estudo através da internet, e cuja trajetória pessoal de envolvimento com as fan fictions é análoga àquelas analisadas na referida pesquisa, confirmando, espontaneamente, algumas das proposições nela esboçadas. Para nossa alegria, as pesquisas sobre fanfics continuam a se multiplicar, bem como a prática em si na língua portuguesa. Recentemente demos entrevista a uma estudante de jornalismo do Instituto de Educação Superior de Brasília que desejava escrever uma matéria para o jornal da faculdade, sobre o tema. Para alegria da estudante e a nossa, o artigo foi premiado na instituição3. Esses casos de jovens envolvidas com fan fictions procurando teorizar sobre elas no meio acadêmico têm se repetido, espelhando um fenômeno que há acontece nos Estados Unidos, berço da prática. Fan fictions são histórias ficcionais escritas por fãs – donde o nome oriundo das palavras em língua inglesa, fan e fiction – de forma totalmente voluntária, criadas com base em outras obras de ficção já existentes e, no mais das vezes, produzidas pela chamada indústria do entretenimento de massa. É uma prática bastante popular nos Estados Unidos desde antes do advento da internet, e teve sua origem no desejo dos fãs dos filmes e da série de TV Star Trek – Jornada nas Estrelas, no Brasil – de participar mais ativamente daquele universo por eles venerado. Poderíamos dizer que frente à impossibilidade de se tornarem personagens dos episódios, os fãs optaram por se tornarem autores, passando a escrever novos episódios envolvendo os mesmos personagens e enredos dos originais. Essas histórias eram veiculadas em fanzines, revistas de impressão caseira que, como o próprio nome indica – oriundo das palavras fan e magazine, fã e revista, em inglês – eram distribuídas ou mesmo vendidas dentro dos fandom de Star Trek, no caso. O vocábulo fandom, também de origem inglesa, é formado pelas palavras fan e kingdom, ou seja, fã e reino, e designa a comunidade de fãs envolvida em atividades, como a escrita de textos, que girem em torno de um determinado filme, seriado de TV, jogo ou livro. Com o aparecimento e a difusão da internet pelo mundo, as fanfictions, agora divulgadas online, passaram a atingir um público cada vez mais amplo, ainda em língua inglesa, sendo escritas sobre uma grande variedade de temas, como séries de TV – o tema Embarcando nessa ficção científica desde minha adolescência, considerada ridícula pela maioria das pessoas, passei anos me divertindo e divertindo a outros que comungavam das mesmas ideias que eu. Se te interessar conhecer meu site de fics: [http://www.geocities.com/xmenfanfiction2001/fanfiction.htm] Ou na comunidade do orkut dedicadas a elas: [http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=13367505] QUIROZ, Eneida. Obrigada, Maria Lúcia. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 31 de julho de 2006. 3 Professora, a matéria que escrevi segue em anexo. E uma ótima notícia: fui premiada na faculdade por ela! NORMANDO, Leila. Matéria sobre fanfic. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 20 de dezembro de 2010. 12 mais popular desde sua gênese –, desenhos animados, histórias em quadrinhos, games4, filmes e livros. Inúmeros são os sites de fãs, em língua inglesa, que dedicam parte de seu espaço virtual e de seus esforços na coleta, organização, publicação e difusão de fanfictions. No Brasil, essa prática chegou justamente através da internet, sendo razoavelmente recente. O fenômeno adquiriu visibilidade nos últimos dez anos, período em que ganhou impulso em virtude da popularidade de um livro, fenômeno de vendagem em todo mundo: Harry Potter. O primeiro livro da série, Harry Potter e a pedra filosofal, foi publicado no Brasil em abril de 2000 e raros são os sites de fan fiction encontrados em português brasileiro que sejam anteriores a esse período. A partir daquele ano, contudo, pudemos observar o surgimento de uma profusão de sites dedicados a fanfictions de Harry Potter e outras séries ficcionais, principalmente as televisionadas, comprovando que o número de pessoas dispostas a gastar suas horas de lazer envolvidas com processos de leitura e escrita e seu compartilhamento online com outras pessoas que desfrutam do mesmo gosto, aumentou de maneira significativa. Ao mergulhar nesse universo, um nicho em particular nos mobilizou. De todos os subgêneros que a fan fiction desenvolve e mesmo cria, o que mais nos chamou a atenção foi o slash, justamente por sua singularidade, inventividade e aparente transgressão. Trata-se de ficções normalmente escritas por mulheres com vistas a um público leitor também feminino, no qual são desenvolvidos romances de natureza homoerótica envolvendo o gênero masculino. Nosso primeiro contato com fics slash se deu em língua inglesa. No entanto, acompanhando a multiplicação de autores e leitores do gênero fan fiction falantes do português brasileiro, nos foi possível observar o crescimento do subgênero slash também na língua pátria. Em virtude da aglutinação do maior fandom fanfiqueiro do país acontecer em torno da série Harry Potter, fez-se naturalmente crescente também a produção de slash utilizando, em sua maioria, personagens do universo ficcional criado por J. K. Rowling. No Orkut, ainda o maior website de relacionamentos da internet em número de participantes brasileiros, encontramos, em uma busca rápida, sete comunidades dedicadas a agregar fãs de slash de Harry Potter, que, juntas, totalizam mil novecentos e cinquenta e três membros. O crescimento desse subgênero em websites nacionais e a ausência de estudos acerca do tema no País ensejaram a elaboração da presente pesquisa, visando à apresentação, a nosso ver, da mais instigante vertente do tema anteriormente desenvolvido sob a forma de 4 Games aqui refere-se a jogos online, aqueles jogados por jogadores conectados a rede mundial de computadores, ou a video-games, jogados em computadores ou televisores conectados a um aparelho utilizado especificamente para esse fim. 13 dissertação de mestrado. O que é o slash, qual o tamanho de sua presença em língua portuguesa e por que ele existe, ou seja, quais são as razões que levam as autoras e leitoras ao envolvimento com esta escrita, sua proximidade ou não com o romance sentimental – considerado a ficção erótica mais consumida pelo público feminino – e a possível presença de uma voz transgressora nessa ficção erótica de cunho não comercial, são as principais perguntas que buscamos responder nesta pesquisa. Mais do que em todos os outros subgêneros de fan fiction, o slash emerge como um território eminentemente feminino, o que contribuiu para aguçar nossa curiosidade, uma vez que se trata de inusitada forma de escrita erótica feminina, aparentemente desconhecida fora do ambiente fanfiqueiro. Compreendemos que cumpre apresentá-lo ao meio acadêmico enquanto subgênero de alcance mundial, registrar seu desenvolvimento e suas práticas em língua portuguesa do Brasil, ainda que saibamos não ser possível mapear todas as atividades escritas e mesmo imagéticas em slash potteriano, e oferecer ao debate uma teorização acerca das razões que o trazem à existência, mesmo cientes de que tais teorizações não são conclusivas. Para tanto, dentre as muitas possibilidades existentes na prática da fanfiction, nos propusemos a, em primeiro lugar, observar o fandom potteriano brasileiro – ou pelo menos parte dele, haja vista seu crescente desenvolvimento – e aí buscar a existência de comunidades voltadas para o slash potteriano, inclusive para compreendermos quem são as mulheres envolvidas com a prática e como se relacionam, uma vez que o slash possivelmente recebe uma recepção mais difícil de parte do público em geral, do que a própria fan fiction em geral. Objetivando conhecer de maneira orgânica o funcionamento do fandom, nos filiamos a um mailing list de slash potteriano, ao qual se somam incontáveis fanfics postadas das mais diversas formas na internet. Dessa forma, tivemos acesso a e-mails e debates que descortinam parcialmente, como não poderia deixar de ser, as motivações e as práticas das autoras e leitoras desse subgênero. No primeiro capítulo retomamos a gênesis da fan fiction e apresentamos uma questão fundamental para a compreensão da permanência dos fãs em uma atividade que demanda tempo, energia criativa e que requer habilidades tidas por muitos em nosso país como difíceis, a leitura e a escrita. Trata-se da questão identitária. Imbuídos da identidade autoral e da identidade de fã, o que à primeira vista pode parecer um pouco paradoxal, os fanfiqueiros analisam em pormenores a obra pela qual são apaixonados, participam de debates acirrados, vasculham a internet em busca de dados extras sobre qualquer coisa que tenha relação com a obra e nela interferem, ajustando-a a seus desejos pessoais. É o poder da fantasia e a realidade da superação do isolamento que agenciam um simbolismo tão forte a ponto de fazer os 14 envolvidos com as fan fictions despenderem inclusive dinheiro na manutenção de generosos arquivos na internet. As características da fan fiction, onde encontrá-la, em que gêneros ela é disponibilizada, quais são suas tendências no que se refere ao número de publicações para um determinado original, quais os critérios para o sistema de classificação por idade, como lidar com o menu de buscas do maior depositário de fanfics da internet, o fanfiction.net, e onde se encontram exemplos de slash nesse universo, também são questões estudadas. No segundo capítulo nos dedicamos a comprovar a presença das fan fictions slash em português em cada uma das categorias existentes no fanfiction.net. Procuramos os dois títulos com maior número de postagens em cada categoria e nos dedicamos a buscar, nestes a presença de fics slash escritas em português do Brasil. O resultado foi surpreendente. Uma vez tendo comprovado a existência de um número significativo de fanfics slash escritas em língua portuguesa em fandons outros que não apenas o potteriano, passamos a explicar sua origem bem como suas características atuais. Apresentamos alguns exemplos de fan fiction slash de autoria de brasileiras e em quais arquivos nacionais elas podem ser encontradas. Nesses sites, nacionais ou estrangeiros, há a preocupação com o possível acesso a textos que sejam inadequados para os visitantes e, aparentemente, são tomadas algumas precauções para avisar o visitante incauto sobre o conteúdo que se encontra naquele endereço. Infelizmente, constatamos que nem todos os websites depositários de fan fictions slash sobrevivem por muito tempo. Ainda no segundo capítulo procuramos mapear, sutilmente, as fan arts realizadas em torno do slash potteriano. Escolhemos cuidadosamente artes e vídeos que não fossem demasiado explícitos em seu conteúdo homoerótico, com o propósito de não ofender os possíveis leitores desta tese, mas não pudemos – e nem tencionávamos – nos furtar a exemplificar a presença das fan arts justamente pela importância que ela desfruta nos fandons aglutinados em torno do slash. A escolha do título, Fanarts e fanvids: ―please leave all your concepts of normality at the door‖, pretende oferecer um aviso ao leitor de que a expressão erótica através da arte é território de ousadia, como a própria natureza do sexo e, portanto, não passível de obediência às normas de bom e mau gosto, elas mesmas submetidas a variações de cultura. Com base em teorias desenvolvidas por pesquisadores norte-americanos acerca das motivações que levam fãs mulheres a optarem pela leitura e escrita de slash, fundamentalmente a teoria que o aproxima do romance erótico feminino de alcance popular – como as publicações da editora Harlequin – ensejamos compreender possíveis motivações que seriam de validade tanto para o fandom potteriano norte-americano, como o brasileiro ou de 15 qualquer lugar do mundo, pois tratam da formação da psique feminina, não se limitando, portanto, a estereótipos culturais de diferentes sociedades. Para tanto dedicamos o terceiro capítulo a registrar a polêmica internacional em torno das motivações que justificam a existência do slash. Tivemos a sorte de poder oferecer vozes de autoras brasileiras acerca das temáticas debatidas, solicitando sua autorização para a reprodução de trechos de e-mails internos do Potter Slash Fics, grupo brasileiro ao qual nos afiliamos para melhor compreensão da dinâmica de um fandom slash. A pesquisa de Salmon e Symons, que disseca o slash de um ponto de vista evolucionista foi fundamental para nossa compreensão dessas ficções como literatura erótica, ainda que sua pesquisa não seja conclusiva e tenhamos nos visto compelidas a comentar alguns pontos por eles apresentados. No quarto capítulo nos propusemos a cotejar um romance sentimental com uma fic, justamente para buscar pontos que os pesquisadores acreditam serem comuns a ambas as ficções. Foi surpreendente observarmos características determinantes do slash em um romance comercial e perceber as projeções e diferenças marcantes entre essas ficções eróticas. Acreditamos que já deve haver vozes discordantes dos autores por nós escolhidos, pois a dinamicidade do fandom faz com que se teorize de forma orgânica e, mais cedo ou mais tarde, essas teorizações acabam por chegar às prateleiras das livrarias. É importante registrar, também, que há uma grande complexidade em termos de subgêneros em que o slash, aqui qualificado como um subgênero da fan fiction, tem sido desenvolvido, o que concorre para a impossibilidade de generalizações conclusivas sobre a prática. Ainda assim, acreditamos que esta tese oferece um primeiro ponto de partida para estudos futuros sobre um tema instigante e que muito tem a oferecer para a compreensão da ficção produzida pelos fãs, da ficção erótica feminina e, consequentemente, sobre as próprias mulheres e sua sexualidade, em permanente diálogo com a sociedade. 1 OS PRIMÓRDIOS DA FANFICTION Fanfiction é o nome que designa um gênero de produção textual de cunho literário, embora de caráter amador, nome cunhado pelos próprios autores e leitores deste gênero ímpar. O gênero surgiu dentro dos chamados fandons, grupos de pessoas que se relacionam com base em uma profunda apreciação por uma narrativa ficcional, normalmente produzida pela indústria cultural e divulgada através dos meios de comunicação de massa. A fanfiction (também grafada fan fiction), fanfic, ou simplesmente fic, é um tipo de ficção produzida, como o próprio nome em língua inglesa indica, por um fã que faz uso dos cenários, dos personagens e da trama desenvolvidos na narrativa original, sem nenhum intuito comercial ou de lucro de qualquer espécie, apenas para o deleite dos fanáticos, ou seja, dos admiradores mais ardentes da obra em seu conjunto ou mesmo apaixonados apenas por alguns de seus personagens. À guisa de conceituação convém esclarecermos que no decorrer da execução e da redação da presente pesquisa, em algumas ocasiões, utilizamos os vocábulos “literatura” e “literário” como sendo “a expressão dos conteúdos da ficção, ou da imaginação, por meio de palavras polivalentes, ou metáforas”1. Precisamente porque o estudioso responsável pelo conceito assegura que nele se faz ausente a questão da noção de valor, açambarcando, portanto, “desde as obras melodramáticas dos noveleiros à Xavier de Montépin até o Ulysses, de James Joyce”2, por ele optamos, uma vez que estudamos peças ficcionais escritas por autores amadores, tendo como pano de fundo e suporte a chamada cultura pop, ou de massas, bem como as inovações tecnológicas de compartilhamento social, via internet. Não se faz adequado, portanto, discorrermos sobre as características que diferenciam a chamada Alta Literatura das demais, até porque o gênero fan fiction, por sua natureza, é um tanto marginal às discussões de caráter acadêmico. Ademais, o próprio Antonio Cândido compreendeu a natureza indomada da relação do leitor com a literatura, não cerceável em sua recepção, o que também ocorre no caso da fanfiction, expressão do contato e da reformulação da realidade que é oferecida ao leitor através dos textos ficcionais com os quais entra em contato, independente de seu valor literário. 1 MOISES, Massaud. Dicionário de termos literários. 19 ed. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 314. 2 Ibidem, p. 315. 17 A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. [...] . Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, [...], ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela. [...]. Dado que a literatura ensina na medida em que atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do moço trazem frequentemente aquilo que as convenções desejariam banir. [...]. É um dos meios por que o jovem entra em contato com realidades que se tenciona escamotear-lhe3. A prática da fanfiction nada mais é do que um modo bastante particular e eficiente, engendrado pelos fãs, de penetrar no universo ficcional apreciado por eles e torná-lo seu, apropriar-se daquilo que lhes é muito caro do ponto de vista afetivo e promover modificações da trama, ainda que num universo privado, ou mesmo “impedir” o encerramento das obras, continuando-as para muito além do ponto final decidido pelo autor. O cancelamento de uma minissérie televisiva muito popular nos idos dos anos sessenta, nos Estados Unidos, conhecida no Brasil como Jornada nas Estrelas – um verdadeiro ícone da cultura sci-fi que atualmente transbordou para o imaginário da cultura pop e nerd/geek4 no mundo ocidental atingindo mesmo aqueles que não consomem ficção científica –, foi exatamente o gatilho para a popularização das fanfictions. Informações disponíveis em sites na internet, organizados por fãs que se preocupam em resgatar fatos históricos importantes para a compreensão deste gênero – como o Destina`s Fan Fiction Frequently Asked Questions5 e o Fan History Wiki6, ambos online há pelo menos cinco anos7 – esclarecem que as fanfictions saíram das gavetas de seus autores para a veiculação através de fanzines, revistas (magazines) produzidas e distribuídas dentro dos fandons. Conforme as indicações disponíveis, a primeira fanzine dedicada ao seriado Jornada nas Estrelas data de 1967. A série, por Gene Roddenberry, alcançou imensa popularidade gerando uma grande quantidade de produtos spin-off 8, além de adaptações para as telas do cinema, games e um 3 CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. São Paulo, 1988, vol 24, n. 2, p. 805. 4 “Nerd”, ou “geek”, é o termo utilizado para se referir a todos aqueles que têm uma certa obsessão por tecnologia e são extremamente aplicados as suas tarefas, sejam elas de cunho profissional ou acadêmico. Os “trekkers”, fãs do seriado Star Trek, Jornada nas Estrelas, são profusamente encontrados dentre os nerds ou geeks. 5 DESTINA'S Fan Fiction Faq. Frequently Asked Questions. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2009. 6 FANHISTORY. Fan Fiction. Disponível em: . Acesso em: 15 Jul. 2009. 7 Cabe lembrarmos que esta prática é muito anterior ao advento dos computadores. 8 Spin-off é como são chamados os itens comercializáveis, lançados a partir de um produto principal, que variam de peças de vestuário a brinquedos, passando por materiais escolares e tudo o mais que o mercado pareça apto a consumir. 18 parque temático em Las Vegas9. Talvez a principal característica do seriado fosse refletir importantes questões de sua época – no caso, os anos sessenta, marcados pela Guerra Fria – mas num contexto futurístico onde a humanidade já teria superado muitos de seus problemas, como a fome e as doenças, e seria participante da “Federação dos Planetas Unidos”, um tipo de governo intergaláctico que cuidaria do bem-estar de todos os membros participantes. A bordo da nave estelar USS Enterprise, os protagonistas da série, unidos a membros da tripulação de aparência humanóide, mas pertencentes a outras raças interplanetárias, realizavam missões com o intuito de explorar novos mundos e encontrar novas civilizações. Com o mote “ir onde nenhum homem jamais esteve” a aventura estava garantida ao mesmo tempo que, no microcosmo da nave, questões interpessoais – que não são resolvidas com base na erradicação dos males da pobreza – eclodiam e eram negociadas entre seus membros, sempre de forma altruísta, sem perder de vista sua missão maior e o bem estar da Federação. Os fãs que a série foi angariando (embora tenha chegado a ser cancelada nos seus primórdios devido à baixa audiência) em seus anos de reprise e de lançamento de novas fases da mesma trama, acompanhavam as aventuras e desventuras emocionais desses personagens, observando as lacunas deixadas pelo roteiro original, no seu entender, a serem preenchidas. Eles assim o fizeram, escrevendo novos episódios mesmo depois do cancelamento da série original e criando novas respostas para situações não resolvidas na tela. Essas histórias, criadas por alguns fãs, alimentavam a imaginação de outros e sedimentavam ainda mais a relação entre eles como membros de um mesmo fandom, que partilhavam de uma identidade comum. 1.1 A QUESTÃO IDENTITÁRIA PARA O FANFIQUEIRO A questão da identidade que leva à criação e à opção de pertencimento a um fandom é fundamental para a compreensão do dispêndio de tempo e de energia criativa que os fãs oferecem a esse tipo de atividade. Em primeiro lugar acreditamos que a necessidade de comunicação com outros seres humanos com os quais se partilhe algo de precioso é fundamental para a psique humana, prova disso é que nos ressentimos quando colocados em 9 SCI FI WIRE. Confirmed: New contract to keep Star Trek The Experience alive in Vegas. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2009. 19 posição de isolamento. O fato de os autores e leitores de fan fiction e os demais envolvidos com os fandons relacionados à indústria cultural sentirem a depreciação de suas atividades por parte de alguns elementos representantes da intelectualidade em seu país contribui para esta sensação de isolamento, embora atualmente já tenhamos ciência de que autores e produtores industriais acompanham o universo das fics, o que reflete no rumo que seus produtos venham a tomar. Ainda assim, e a despeito de muitos trabalhos interessantes realizados por fãs, inclusive – porque não? – longos romances que possivelmente poderiam rivalizar em qualidade com muitos dos que se encontram publicados pelo mercado editorial, persiste, na sociedade, uma pressuposição de que o investimento de tempo e energia criativa em produtos oriundos da indústria cultural são indicativos de, no mínimo, imaturidade por parte de quem o faz. Paralelamente, no caso da literatura, a chancela acadêmica/escolar, bem como a da indústria do livro, é fundamental para o reconhecimento público das atividades de escrita e de leitura. Infelizmente ainda é comum ouvirmos a atividade de leitura de textos não canônicos – como o caso dos quadrinhos, eternos vilões da literatura – ser equiparada ao “nada fazer”, e a dedicação à escrita como atividade de lazer ser considerada perda de tempo, por não estar associada a trabalhos escolares ou acadêmicos. Ao mesmo tempo que valorizam o pertencimento a um grupo que compartilha de suas paixões por determinadas narrativas, os fãs escritores de fanfictions também investem em uma identidade autoral, e se queixam – em fóruns e mailing lists (grupos de compartilhamento de e-mail) – do preconceito que sofrem por serem autores e leitores de fanfics. Dentre as muitas queixas existentes online em língua inglesa, escolhemos reproduzir a colocação da internauta que assina como Kathy, webmistress do site The What manifesto?10 – que tem como objetivo fornecer informações sobre todos os estilos de escrita – pois resume bem o tipo de preconceito relacionado às fanfictions. Embora reconheça que o gênero verdadeiramente apresenta histórias mal escritas, embora não unicamente, a autora argumenta que tal se deve ao seu caráter democrático – e não simplesmente ao fato de ser fan fiction – ou seja, ser aberto a qualquer um que simplesmente deseje escrever ficção por sobre um material previamente existente, do qual seja fã. Segundo Kathy: 10 THE WHAT MANIFESTO. The What Manifesto: Links, essays, writing and stuff. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2009. 20 Um preconceito contra a fanfiction persiste até os dias de hoje. Existem aqueles que não consideram a escrita da fanfiction como equivalente a escrita “real” (i.e. escrever trabalhos originais, geralmente para publicação). A fanfic é estereotipada como sendo escrita de forma pobre, cheia de clichês na trama e na interação dos personagens, e recheada de personagens de auto-inserção que, na verdade, são o autor mal disfarçado. Como em todo o estereótipo, existem grãos de verdade no que foi exposto acima. Mas existem fanfics que às vezes são mais bem escritas do que o material original de onde foram inspiradas, algumas vezes porque elas podem fazer coisas que o filme/show/livro/game/pessoas não podem fazer. Esse é especialmente o caso de séries televisivas onde algumas coisas nem sempre podem ser mostradas em virtude dos censores da rede. Ao mesmo tempo, existem histórias que são malfeitas e escritas de forma amadorística... mas, por outro lado, esses mesmos autores provavelmente estariam criando histórias mal-feitas e amadoristicamente escritas mesmo se estivessem criando seus próprios universos. Por que? Porque, simplesmente, eles são amadores! Eles ainda não aprenderam como se conta uma boa história, então, é claro que eles vão se perder pelo caminho. As fanfictions podem oferecer aos escritores novatos uma chance de escrever histórias com personagens e ambientações com os quais eles se sentem confortáveis, enquanto ainda trabalham na criação de sua própria voz e estilo. Se eles passarem a criar seus trabalhos originais, muito bem (pelo menos na minha opinião), mas, caso contrário, enquanto eles estiverem escrevendo coisas das quais gostem e das quais seus leitores gostarem, está bom também11 (Grifos no original, tradução nossa). A prática da fanfiction como plataforma para futuros saltos em textos originais e mesmo como preparação para a carreira de escritor profissional, já havia sido mencionada quando da realização de nosso primeiro estudo sobre o tema. Tivemos a oportunidade de observar a manifestação de jovens autoras de fanfiction pertencentes ao fandom de Harry Potter no Brasil, como o da autora sob o pen-name de Mel ao Sol que afirmou “[...] para mim é um hobby, como desenhar ou ouvir música. Eu me divirto horrores escrevendo. Também serve para aperfeiçoar minha maneira de escrever e como um treino para quem sabe, um dia, vir a publicar coisas minhas”12. Na época da entrevista, esta autora possuía 34 pequenas fanfictions baseadas em Harry Potter publicadas online, muitas delas em andamento. 11 A bias against fanfiction persists to this day. There are those who do not consider writing fanfiction to be the same as 'real' writing (i.e., writing original works, usually for publication). Fanfic is stereotyped as being poorly written, full of cliched plots and character interaction, and stuffed with self-insertion characters who are really the author badly disguised. Like any stereotype, there are grains of truth to the above. There are also fanfics that are sometimes better written than the original material they're taken from, sometimes because they can do things the movie/show/book/game/people couldn't do. This is especially the case for TV shows, where things can't always be shown because of network censors. By the same token, there are stories that are badly done and amateurishly written...but then again the same authors would most likely be creating badly done and amateurishly written stories if they were creating in their own universes. Why? Because, quite simply, they're amateurs! They haven't learned what it takes to tell a good story yet, so of course they're going to fumble along. Fanfiction can allow novice writers a chance to write stories with characters and settings they are comfortable with, while they work on creating their own voice and style. If they move on to creating their own original works, so much the better (at least in my opinion), but if not, so long as they're writing things they enjoy and their readers enjoy, that then that's good too. MANIFESTO. Definitions with Miscellaneous Opinions Scattered Throughout. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2009. 12 VARGAS, Maria Lucia. O fenômeno fanfiction. Passo Fundo: UPF Editora, 2005, p. 84. 21 No decurso da realização da presente pesquisa entramos em contato com um grupo de escritoras e leitoras de fanfiction através do Yahoo!Groups, denominado Potter Slash Fics, e tivemos a oportunidade de acompanhar, através de e-mails trocados espontaneamente durante a interação dentre os membros do grupo, comentários referentes à depreciação dessa sua atividade de fã, bem como sobre a questão da autoria. A autora L ofereceu um importante comentário como reação à queixa de outra autora, Ma. A desenvoltura com que tece suas críticas impressiona pela segurança com que afirma a existência de autoras amadoras, pertencentes ao grupo, tão boas ou melhores que autores publicados pelo mercado editorial. Tampouco J. K. Rowling, criadora do original que promoveu a congregação dessas fãs nesse grupo, ou o prolífico autor de O senhor dos anéis, J. R. R. Tolkien, são poupados de críticas em relação as suas obras. E tem mais um enfoque muito legal de se ver/ler: tem muita gente boa – e bota boa nisso – que começou como fanfiqueira, tanto lá fora como aqui. Temos a nossa Ptyx com seu primeiro livro, a Maya com seu crônicas demoníacas, enfim fanfic é um exercício muito válido para o começo da autoria. Ultimamente por conta da moçada adolescente que estou atendendo, tenho lido váriosssss livros de vampiros. (sim, estou gostando...rs). E, modéstia à parte, nosso grupo tem autores muito melhores: as soluções encontradas são mais ricas, e se não houve a construção inicial da personagem, houve um desenrolar muito mais denso e criativo em muitos casos. E não estou falando de slash, estou falando é da escrita pura e simples mesmo, do desenrolar da história. Aliás... falando em construção da personagem... Harry Potter é bem fraquinho nisso, né ? Acredito por isso que seja tão rico em boas fanfics. A gente pode viajar legal, sem escorregar na maionese. :) “Poxa, L***, mas são livros inteiros, eu só escrevo estorinhas...”Nem sempre, mon amour : tenho lido minilivros ultimamente, e mesmo naqueles que tem 14 livros na série (descobriram o filão de ouro, tchê!) eu me lembro do Senhor dos Anéis falando da paisagem das colinas... ou seja, embromation pura e simples. E tem gente aqui que escreveu umas boas 35 páginas no word, né? (L***, fã das meninas e meninos do PSF e não abre.:))13. Em que pese o fato desse e-mail não ter sido escrito com a intenção de ser tornado público (embora tenhamos permissão para utilizá-lo em nossa tese)14, a espontaneidade da autora, natural, tendo em conta o círculo para o qual escreveu, também nos possibilita apresentar uma característica comum ao fandom, a de que nada, nem ninguém é sagrado. Essa liberdade de que gozam os membros do fandom de analisar, criticar, repensar, reescrever e, sobretudo, colocar sua marca pessoal – para melhor ou pior – nos produtos que elegem como 13 L. Fanfiqueiros e fanfics. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 01 de outubro de 2009. 14 É em virtude dos termos em que a permissão para uso dos e-mails nos foi concedida, que não utilizamos os pseudônimos completos das autoras nas referências dos e-mails nem tampouco no corpo do texto da tese. 22 admiráveis pode soar perigosa para a indústria do entretenimento, mas é invejável e, mesmo, desejável, principalmente quando nos deparamos com fãs que analisam com muito afinco os materiais de seu apreço, como a autora L. Sua manifestação gerou comentários simpatizantes de parte de outras autoras, que se sentiram apoiadas em seus esforços autorais, como A, que escreveu: Meu, quero imprimir esse texto e esfregar na cara de todo mundo que torce o nariz pra fanfic! Juro, fiquei com vontade! ~~~/o/ E, vamos lá, tem fic que além de ser melhor que muitos livros consegue ser maior. Já viram o tamanho da Sacrifices Arc? Cambiare Podentes? If You Are Prepared? Enormes! Fanfic ensina a gente a rebolar. Ou vocês acham que desenvolver um história em 2 dias como no Tournament é fácil? Ou adaptar com um filme? Ou escrever uma história que cabe inteira num post do Twitter? PSF RULEIA. A***~~ proud ficwriter and proud of ficwriters15. A autora se refere a festivais e concursos que são promovidos dentro do fandom, que apresentam desafios complexos aos autores, como, por exemplo, escrever uma história inteira em, no máximo, 100 palavras. As práticas propostas por esses desafios remetem àquelas propostas a alunos de cursos de Escrita Criativa, nos quais os aspirantes a escritores desenvolvem histórias partindo de diferentes possibilidades, embora originais. Impressionante é a resposta da autora L sobre a pergunta que lançamos, acerca do porquê de as autoras se interessarem pelas fanfictions. As perguntas que a autora faz, por exemplo, sobre um personagem secundário da série Harry Potter nos dão a dimensão do envolvimento dela com esta história. As fanfictions, no caso de L, bem como de muitos outros autores, são a concretização de um movimento interior no qual o leitor percebe a si mesmo como um possível autor, dessacralizando a ideia de que a escrita criativa é facultada somente aos eleitos pelas musas. 15 A. Fanfics e fanfiqueiros, 2009. 23 Aí, EXCELENTE pergunta: o que nos atrai para as fanfics? Vou responder por mim. Bom, eu adorei HP quando comecei a ler. Achei criativo, mas com personagens rasos. Eu lia e ficava sonhando: poxa, e se acontecesse tal coisa ? Ah, mas é “livro para adolescente”, não dá... ah, mas tal coisa dá. Aí, entrei em lista de fãs. Então descobri as fanfics, e - essas SIM! - tinham respostas e soluções criativas para algumas das dúvidas que eu tinha. Lógico, como tudo na vida, tinha fanfic boa e fanfic ruim. E como boa devoradora de pecados, ops, boa leitora radical, eu devorava tudo que lia de HP, porque os livros demoravam DEMAIS para sair e a fome de HP era avassaladora... aí comecei a questionar mais duramente, e *momento modéstia off* pensar: cara, se isso é fazer fanfic, eu também faço, porque eu adoro o fandom, e adoro os livros e gosto dos personagens, e nada me impede de escrever, falou? *momento modéstia on*. Lógico que eu lia coisas primorosas, e pensava: bom, aí eu não chego, mas... dá para transmitir minhas viagens na personalidade das personagens. Porque eu sinceramente acho um CRIME a forma rasa como a JK "desenvolveu" suas personagens. Exemplo: por quê uma personagem fantástica como o Kingsley só é descrita (Todas as vezes até o livro 6) como alguém de voz forte, alto, com um brinco em uma orelha que ele quase todas as vezes aparece tocando. Porquê ele toca o brinco? Como começou isso? Quem é ele? Como chegou a ser bruxo? De onde é sua família? Qual é sua relação com seus antepassados? Como ele se tornou auror? Essa e outras dúvidas - porquê o Snape não gosta de tomar banho? Como é verdadeiramente o Lupin? Como ele aguentou ano após ano virar um lobisomem? O que realmente uniu os Marotos, e o que realmente uniu o trio Harry-Ron-Mione? Tá muito raso... são amizades de uma vida que se formam em uma reles viagem de trem? Sei lá... falta... substância. E essas perguntas intrigantes que os fanfiqueiros decidem responder, a seu modo. E conheci algumas das pessoas que escreviam, e - como todas as pessoas - alguns eram fantásticos, outros irritantes, outros inacessíveis, outros só tinham trocado de email...rs, enfim eram pessoas. E essas pessoas faziam diminutas obras-primas, mesmo que com personagens originalmente criados por outros. Criados? Não sei... ainda não sei se o que JK fez com as personagens possa ser chamado criação. Principalmente as femininas, tem tanto espaço de criação que tudo, virtualmente tudo é possível de se fazer com elas sem sair do canon. E eu tinha mais HP - que eu adoro - de boa qualidade, mais em conformidade com o que eu achava certo, e a preço módico! (só a conexão internet...rs). E amigos e amigas que: - não me achavam "criançona” aos trinta; - não achavam bobagem; - sabiam falar do que eu gostava; - e se estimulavam a criar algo de boa qualidade. Isso que eu acho importante, o criar algo de boa qualidade... aprender a escrever. Cara, se todo professor de portugues pensasse bem, mandaria a turma escrever fanfic. Porque o criar a personagem desde o início já é um pouco trabalhoso, mas começar de um determinado patamar e a partir daí criar situações, é mais fácil para o início do processo da escrita. Bom... escrevi demais, como sempre. KKKKKKKKKKKKK E vou lixar as unhas. L***16. O post de L reafirma algumas das teorias acerca da motivação dos envolvidos com as fanfics, de maneira geral. Em primeiro lugar destaca-se a necessidade de dar continuidade ao universo ficcional com o qual se está envolvido e fazê-lo em comunidade com outros fãs, de forma a estabelecer um diálogo que promova possíveis respostas – preenchimento de lacunas, diríamos nós – para as dúvidas apresentadas no enredo. Em segundo lugar aparece o desejo de 16 L. Fanfiqueiros e fanfics. 2009 24 autoria, de tornar-se voz ativa que também age sobre aquele universo ficcional, deslocando a autoridade para si, agora uma co-autora, com tudo o que isso significa de investimento afetivo na auto-estima de quem o faz. Interessa-nos, ainda, observar que ela revela sua faixa etária, num momento de intimidade com o grupo. Em vários outros e-mails tivemos a oportunidade de colher essas pequenas informações pessoais que nos dão alguma dimensão sobre as realidades não virtuais das participantes do grupo e que serão, oportunamente, apresentadas nessa pesquisa. Referindo-se à criação e ao desenvolvimento de identidades autorais, bem como à criação de relações virtuais, no fandom potteriano, em mais de um trabalho o pesquisador e fã ativo no universo das fanfictions, Henry Jenkins – que se autodenomina um “aca-fan”, mistura de acadêmico e fã – cita o caso da adolescente norte-americana Heather Lawver, criadora e webmistress do Daily Prophet17. Fã de Harry Potter, que ela começou a ler aos treze anos de idade, a garota desenvolveu um impressionante jornal virtual, do qual ainda é editora-chefe. O jornal é um verdadeiro laboratório e referência para jovens que estão desenvolvendo suas habilidades como escritores, tudo sob a tutela cuidadosa de Heather, que checa todos os textos publicados, sem contar as sugestões que ela postou para professores, sobre o uso do material lá existente, em sala de aula. O site parte do compartilhamento da fantasia comum aos fãs, de pertencerem ao mundo potteriano como crianças e jovens especiais, diferentes, sobretudo dos encontrados no mundo dos trouxas. Assim, os participantes do jornal, responsáveis pelos furos de reportagem, têm de se apresentar através da criação de uma identidade no mundo bruxo que lhes possibilita trazer “notícias” – das quais podem também participar ativamente – a respeito de tudo o que acontece em Hogwarts. Jenkins observa: Muitas crianças apenas criavam o próprio perfil – ser um personagem nesse mundo ficcional bastava para satisfazer as necessidades que as tinham levado até o site. Para outras, esse era apenas o primeiro passo na construção de uma fantasia mais elaborada sobre suas vidas em Hogwarts. Em seus perfis as crianças muitas vezes misturavam detalhes triviais de suas experiências cotidianas a histórias imaginárias sobre sua posição no mundo de J. K. Rowiling18. O autor cita trechos de perfis que denotam o nível de sofisticação a que chegam essas fantasias identitárias por parte daqueles que anseiam por participar do mundo potteriano, e 17 DAILY PROPHET. The Daily Prophet. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2009. 18 JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008, p. 232. 25 que encontram no contato com outros que compartilham dessa vontade com a mesma intensidade, a possibilidade da realização de uma experiência afetiva verdadeira e, sobretudo, não mais solitária. Jenkins percebe que os jovens parecem utilizar-se de elementos de sua vida real, ou de sua vida no mundo trouxa, e entretecê-los com os de sua vida paralela, aquela do mundo bruxo, como no seguinte exemplo: “Fui transferida recentemente da Academia de Mágica de Madame McKay, nos EUA, para Hogwarts.Vivi no sul da Califórnia quase a vida toda, e minha mãe nunca contou ao meu pai que ela era bruxa, até eu completar 5 anos (ele nos abandonou logo depois)”19. O pesquisador se refere a essas identidades como fictícias, mas acreditamos que, sob certo aspecto, elas podem ser consideradas reais. São identidades virtuais criadas a partir de realidades do indivíduo e, em virtude da força com que se manifestam em seu interior, são reais enquanto vivências afetivas. Da mesma forma que um pesadelo, que, embora não se materialize no mundo real, deixa no corpo suado e na aceleração da pulsação cardíaca o rastro de uma vivência, as experiências psíquicas oriundas da literatura que provocam paixão, mobilização dos elementos afetivos do sujeito, não são simples fantasias, mas vivências interiores que irão modificar o relacionamento do indivíduo com o mundo exterior. A identidade virtual possibilita a extensão dessas paixões para o compartilhamento num grupo, o fandom, aumentando sua vivência em tempo e modificando sua intensidade e a forma como o fã se coloca nesse mundo, agora não mais tão irreal, pela interação com outros fãs. Poder compartilhar as minúcias de um livro ou de uma série televisiva, perceber que outras pessoas observam e preenchem lacunas no texto de forma semelhante à sua, disponibilizando-se a reconstruir o texto consigo, debatendo múltiplas interpretações, é extremamente gratificante e aumenta muito o escopo do que é compreendido como recepção do texto. É nossa crença a de que Como para o fã ardoroso a diferença entre o real e o fictício fica parcialmente dissipada na mobilização de seus sentimentos pela obra, ele vive uma intensa ansiedade frente a descobertas resultantes de suas minuciosas e renovadas incursões pelo texto, necessitando da presença do outro para realizar o papel de mediador de suas suposições, pois é no diálogo com o semelhante, no sentido acolhedor da palavra, que o sujeito realiza a elaboração de suas necessidades intelectuais e afetivas. [...] o ser humano, constituído essencialmente pela linguagem, não pode prescindir da presença – no sentido da disponibilidade, não do comparecimento físico, que não necessariamente implica disponibilidade – do outro para a mediação de suas dores e alegrias20. 19 JENKINS, Cultura da convergência, p. 232. 20 VARGAS, O fenômeno fanfiction, p. 76-77. 26 A questão da solidão e das peripécias de que nosso cérebro é capaz para apaziguá-la na ausência da possibilidade de uma interação presencial, é tema de um artigo, publicado na revista Scientific American, no qual os autores sugerem que a interação entre o espectador e seu programa de TV favorito pode oferecer a sensação de pertencimento pela qual ansiamos. Aparentemente, com o objetivo de evitar o isolamento social, desenvolvemos relações chamadas parassociais, nas quais a interatividade não se dá de forma presencial, nem, tampouco, necessariamente com alguém que exista no mundo real, mas com personagens de narrativas que preenchem nosso imaginário, notadamente narrativas imagéticas, de fácil acesso, disponíveis nos televisores presentes em nossas casas. É como se, ao ligarmos os televisores em nossas séries favoritas – ou, no caso brasileiro, novelas –, reencontrássemos pessoas com as quais compartilhamos a vida em suas vicissitudes e alegrias, embora não a nossa, mas exclusivamente as dos personagens. Relações parasociais são o tipo de pseudo-relações de mão única que desenvolvemos com o passar do tempo com pessoas e personagens que possamos ver na TV ou nos filmes. Assim, da mesma forma que uma amizade evolui através do tempo passado conjuntamente e do compartilhamento de pensamentos e opiniões pessoais, as relações parasociais evoluem ao assistirmos os personagens de nossas séries de televisão favoritas e nos tornarmos envolvidos com suas vidas pessoais, idiossincrasias e experiências, como se fossem as de um amigo21. (Tradução nossa). Compreendemos que várias são as motivações que levam alguém a se tornar fã de um seriado televisivo, como as identificações de caráter pessoal e o apaziguamento da solidão, e, assim, a importância da afeição existente entre o fã e seu objeto de apreço e entre o fã e outros fãs que compartilham desse mesmo apreço carrega uma carga emocional que sedimenta os laços de pertencimento a um mesmo fandom. Ao mesmo tempo, também não é de hoje que a escrita é utilizada como elemento apaziguador da solidão. Prova disso são os inúmeros blogs repletos de comentários sobre questões íntimas que proliferam na blogosfera ou o uso confessional de redes sociais como o Twitter ou o Facebook, onde o internauta dasabafa sobre um dia ruim, uma experiência amorosa infeliz ou outras dificuldades pessoais das mais 21 Parasocial relationships are the kind of one sided pseudo-relationships we develop over time with people or characters we might see on TV or in the movies. So, just as a friendship evolves through spending time together and sharing personal thoughts and opinions, parasocial relationships evolve by watching characters on our favorite TV shows, and becoming involved with their personal lives, idiosyncrasies, and experiences as if they were those of a friend. SCIENTIFICAMERICAN. Imaginary Friends: Television programs can fend off loneliness. Disponível em: . Acesso em: 1 set. 2009. 27 variadas ordens. Essa escrita é como um grito que se lançasse ao espaço na esperança de que alguém, do “lado de lá”, seja o interlocutor que interrompe a solidão. “Alguém vai ler meu post”, parece ser a esperança de todos – uma carência de olhares, tão humana e tão bem satirizada, diga-se de passagem, na tira de André Dahmer22 – e os fanfiqueiros não estão imunes a este desejo. Especialmente de parte dos autores mais novos, que estão postando suas primeiras fanfictions, percebemos a existência do apelo por reviews junto ao sumário que descreve, para o prospectivo leitor, do que trata a história23. Podemos inferir que o temor da solidão e a necessidade de formar redes sociais – com leitores, no caso das fanfics – mas, fundamentalmente, com alguém que partilha dos mesmos gostos, ou seja, que pode dividir parte importante de sua vida – é grande, pois os autores se arriscam a receber reviews negativas, ou mesmo a dar de encontro com trolls – internautas muito agressivos em seus posts – e sair dessa experiência com a auto-estima prejudicada. Por que, então, as pessoas se arriscam? Porque não podemos prescindir da fantasia. Acreditamos que, no caso da fanfiction, a necessidade do envolvimento com a narrativa (fantasia) da qual se é fã, somada à projeção de si como escritor (no caso daqueles que não apenas leem), que é também uma forma de fantasiar, carrega um apelo identitário irresistível. Uma nova identidade é possível como membro de um universo que transcende a pequenez do cotidiano, onde sua voz se faz ouvir (como escritor que tem algo a dizer, membro de um fandom) e onde você convive com as pessoas que mais admira (como participante de uma fantasia). Infelizmente, como no caso de Harry Potter, o mundo adulto 22 MALVADOS, Quadrinhos de Humor. Golden Series. Disponível em: . Acesso em: 08. out. 2009. 23 Por Causa de Uma Barata by Gabi Black Potter veriews Gina e Hermione quase morrem de susto por causa de... Please pessoal deixem Reviews... é muito importante para mim. Complete - Harry Potter - Rated: K+ - Portuguese - Humor/General - Chapters: 1 - Words: 436 Reviews: 7 - Published: 1-12-07 - Ginny W. & Hermione G. FANFICTION.NET, Fanfiction.net, 2009. 28 em geral – esse mesmo mundo que produz as narrativas tomadas de assalto pelos fanfiqueiros – teme a liberdade com que os jovens se apropriam de seus produtos. Sem entrar na questão da luta pelos direitos autorais, observemos como a imersão na fantasia é temida como possível sinal de insensatez e perda de tempo. Segundo Henry Jenkins os [...] críticos conservadores alertam que experiências atraentes da cultura popular podem se sobrepor a experiências do mundo real, até que as crianças não possam mais distinguir entre fato e fantasia. [...] De maneira mais geral, eles temem os aspectos de imersão e expansão dos universos imaginários que estão sendo construídos nas franquias midiáticas contemporâneas24. A convergência de mídias que culmina no que Jenkins nomeia narrativas transmidiáticas resulta na possibilidade de ainda mais tempo gasto em torno de uma narrativa, que passa a ter várias plataformas de acesso, livros, filmes, games, universos virtuais – sem mencionar os aspectos de portabilidade – o que pode gerar mais horas de envolvimento, por parte dos jovens, com um universo de fantasia do que com as questões do mundo real. Em que pese a importância dos processos de escolarização e de socialização não virtuais, Jenkins vê as interações virtuais, como no caso do Daily Prophet, como positivas, fornecendo feedback para aqueles processos. Diz ele: O extraordinário nesse processo, no entanto, é que ele ocorre fora da sala de aula e sem qualquer controle adulto direto. Crianças estão ensinando crianças o que elas precisam saber para se tornarem participantes plenas da cultura da convergência. Cada vez mais, educadores estão começando a valorizar o aprendizado que ocorre nesses espaços recreativos informais, especialmente educadores que são contra as restrições ao aprendizado impostas por políticas de educação, que aparentemente só valorizam o que pode ser calculado em exames padronizados25. O autor também percebe a “aura quase sagrada” que o mundo escolar/acadêmico tende a engendrar em torno da escrita e, acrescentamos nós, em torno da leitura de obras canônicas em idades muitas vezes ainda incompatíveis para a plena fruição de tais textos. Jenkins relaciona essa aura de sacralidade ao fato de, no mundo escolar, a distribuição da produção textual ser muito limitada, tendo num único professor seu leitor exclusivo, na maioria dos 24 JENKINS, Cultura da convergência, p. 254. 25 Ibidem, p. 236. 29 casos. Já na internet, o acesso à distribuição em massa muda a experiência de autoria e, embora ainda seja cedo para sabermos quais os resultados desse novo tipo de interação, o pesquisador os vê como sendo promissores. Que diferença fará, ao longo do tempo, se uma porcentagem crescente de jovens escritores começar a publicar e receber feedback sobre sua obra enquanto ainda estão no colégio? Irão desenvolver sua arte com mais rapidez? Irão descobrir sua forma de expressão mais cedo? E o que vai acontecer quando esses jovens escritores compararem suas observações, se tornarem críticos, editores e mentores? Isso irá ajudá-los a desenvolver um vocabulário básico para pensar em narrativas? Ninguém tem certeza absoluta, mas o potencial parece enorme26. Jenkins utiliza o conceito de cultura de participação para se referir a esta crescente recriação de materiais produzidos pela indústria cultural ou mesmo simplesmente materiais que caem no gosto pop e são, por isso, apropriados por fãs com os meios necessários para engendrar novas leituras. Este pesquisador há anos observa a interseção entre duas tendências culturais muito significativas da contemporaneidade, que são, de um lado, a convergência de mídias provocada pela fusão de diferentes indústrias produtoras de bens de consumo cultural e, de outro, a apropriação, de parte dos consumidores destes produtos, das tecnologias que lhes possibilitem realizar trabalhos de apropriação, co-autoria e recirculação destes bens culturais, agora com a marca dos fãs, o que inclui, inclusive, o deboche. O pediatra e psicanalista Donald Winnicott foi um dos melhores teorizadores acerca da importância do brincar para a existência humana em virtude do agenciamento simbólico que essa atividade mobiliza. Escrever, fantasiar, criar uma identidade que ultrapasse as dificuldades impostas pelo crescimento fazem parte de um processo de amadurecimento que oferece vantagens do ponto de vista intelectual e afetivo. O texto literário também se inscreve nas possibilidades da brincadeira já na sua leitura, em virtude dos horizontes e identidades que “empresta” ao leitor, que retorna à realidade com novas percepções – pois que vivências – da mesma e novas possibilidades de inscrição de si nessa realidade. Freud escreveu sobre o escritor criativo e sobre a impressionante habilidade deste de despertar emoções em seu leitor que, talvez, nem julgasse possuí-las. Pai da psicanálise, Freud já observava a relação entre o brincar e o escrever. 26 JENKINS, Cultura da convergência, p. 238. 30 Será que deveríamos procurar já na infância os primeiros traços de afetividade imaginativa? A ocupação favorita e mais intensa da criança é o brinquedo ou os jogos. Acaso não poderíamos dizer que, ao brincar, toda a criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de nova forma que lhe agrade? Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e despende na mesma muita emoção. A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real. [...] O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade27. Em nossa cultura, crescer e amadurecer é relacionado ao estancamento da brincadeira, mas, como bem sabia Freud, esse movimento não é tão simples assim. A brincadeira é deslocada para outras ações e o envolvimento com universos de fantasia se aplica perfeitamente a uma atividade lúdica exercida também por adultos, ainda que esses venham a sofrer a pecha de imaturos. Segundo Winnicott, que relacionava o trabalho terapêutico, a relação entre o psicanalista e o paciente como também uma forma de brincadeira, “o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde [e] o brincar conduz aos relacionamentos grupais”28. Nos relacionamentos existentes nos fandons há, de maneira geral, uma tensão constante entre não se demolir a brincadeira do outro, da qual também se participa, e a demanda por textos mais bem escritos. Como os autores costumam suplicar por Reviews, contanto que essas sejam feitas de maneira gentil, o jogo não é estancado. A reescritura de um texto ficcional que mobilizou seu leitor a tal ponto que este deseja assumir sua co-autoria diz muito não apenas acerca dos elementos do texto em si, mas, principalmente, a respeito da disponibilidade afetiva e intelectual de jovens ativos e participantes em uma cultura de convergência midiática na qual os recursos pedagógicos tradicionais (leitura e escrita) são elementos de expansão do self, talvez, justamente, por estarem fora do controle adulto verticalizado. 27 FREUD, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneios. Obras Completas, volume IX, 9 ed, 1987, p. 112. 28 WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. São Paulo: Imago, 1975, p. 63. 1.2 ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA FAN FICTION 31 Sabemos que os laços afetivos entre os membros de um fandom anteriormente citado, Jornada nas Estrelas, somados à criatividade e à dedicação dos fãs aos elementos daquela narrativa, levaram à criação de um número cada vez mais significativo de possibilidades de preenchimento das lacunas apresentadas no original29. Fãs mais afeitos às letras decidiram pelo registro escrito de suas histórias, que terminariam por encontrar leitores que as quisessem ler. Seus autores passaram então a divulgá-las nas fanzines, normalmente vendidas em convenções – eventos regionais organizados pelos fãs, geralmente realizados em hotéis – e que também poderiam ser compradas pelo correio. A princípio, a fanfiction praticamente se resumia a adição de capítulos extras à série, mas, como já comentamos, em virtude da realização de especulações mais elaboradas sobre as lacunas deixadas pelo original, esta série passou a ganhar reescrituras de capítulos já televisionados, que procuravam oferecer respostas mais complexas e, talvez, mais críveis para questões de relacionamento entre os personagens, além de novas aventuras e desafios intergalácticos. A fanfiction, então, revelou ser uma espécie de “mercado paralelo das letras”. Mercado, aqui, não no sentido monetário que a palavra poderia assumir, mas, sim, referindose a uma economia de troca, no caso, de troca de informações carregadas de vivências afetivas. Tendo por base narrativas oriundas da cultura pop, sem a chancela de qualidade que carrega consigo a chamada Alta Literatura ou as obras consideradas canônicas, nem tampouco considerando a si mesmos como escritores com aspirações à profissionalização, os autores bem como os leitores de fanfiction tomaram para si o acesso à palavra escrita sem pedir licença às autoridades da área, aos literatos, ou às instituições detentoras do saber sobre o assunto, notadamente escolas e a academia, num tempo em que isto não era comum. Ao fazêlo, se utilizaram de parte da nomenclatura e dos processos já existentes no mundo literário reconhecido – chamando, por exemplo, os originais inspiradores de sua prática de canônicos – e criaram todo um processo de validação de sua obra, inclusive, revisores, chamados Betareaders, e um jargão classificatório dos subgêneros para a maior comodidade do público leitor. 29 Wolfgang Iser, um dos responsáveis pela teorização da chamada Estética da Recepção, voltada para as reações potenciais suscitadas nos leitores pelo efeito estético, cunhou a ideia de preenchimento de lacunas em seu livro O ato da leitura – uma teoria do efeito estético. 32 Embora os registros online indiquem que o fandom americano de Jornada nas Estrelas tenha sido um dos primeiros a impulsionar significativamente a produção de fanfictions através de sua divulgação em fanzines, com certeza ele não era o único a realizar esse tipo de trabalho nos tempos que antecederam à criação da internet. Contudo, é plausível crer que os Estados Unidos da América foram o país onde esse gênero começou e, sem dúvida, onde ele mais se desenvolveu. Contribui para isto, acreditamos, o fato de a indústria da cultura de massas situar-se primordialmente naquele país, o que faz com que a língua inglesa seja, até hoje, default para os adeptos dessa prática. Prova disso é a disponibilização online de traduções de fanfics em língua inglesa, trabalho este realizado por fãs que leem e por vezes publicam em inglês, embora sejam brasileiros. É interessante observarmos que o uso da tecnologia disponível sempre foi fundamental para os fãs mais dedicados que, em tempos nos quais não havia ainda a internet e a transmissão televisiva via satélite, encontraram no VCR, chamado vídeo cassete no Brasil, uma forma de “possuir” sua série televisiva favorita, gravando-a em capítulos e utilizando sua reprodução em convenções ou em reuniões com outros fãs para checar dados que contribuíam com a escrita de sua narrativa alternativa, a fanfiction. A cada reprise, a compreensão da história ganhava mais nítidos contornos, possibilitando aos fãs novas inferências que os levavam para além do conteúdo explicitamente apresentado, da mesma forma que a releitura de um livro oferece novas nuances que vão “beber” do background pessoal do leitor, de onde brotam outras interpretações e um renovado enamoramento da obra escolhida. Com a multiplicação de novas tecnologias que possibilitavam maior troca de informações entre os fãs e mais frequente e melhor acesso às narrativas escolhidas, notadamente com o advento da internet, a forma organizacional dos fandons sofreu uma revolução e o número de membros cresceu em escala vertiginosa. Dessa forma, a fanzine virou ezine e a fanfiction libertou-se de suas páginas, espalhando-se pelo mundo, primeiramente, através daqueles que possuíam conhecimento da língua inglesa e, posteriormente, criando raízes nos idiomas de vários países, tornando-se um fenômeno verdadeiramente mundial. Ao mesmo tempo, as séries televisionadas deixaram de ser a principal fonte para a organização de fandons fanfiqueiros, que passaram a utilizar filmes, quadrinhos, games e livros como fontes de inspiração para suas histórias. Na verdade, se considerarmos que autores literários sempre leram outros autores, cujas tramas e cenários lhes serviram de inspiração para suas obras, pois que os tecidos da literatura são entretecidos com fios previamente existentes, chegando mesmo a tomar personagens emprestados para lhes oferecer novos enredos, concluímos que a fanfiction já existia muito 33 antes de ter sido assim batizada. Sua novidade, porém, é estar ligada à releitura de textos da cultura pop e ter se transformado num gênero de escala mundial, cuja atração de novos interessados não parece estar prestes a arrefecer, mesmo numa cultura que se utiliza de grandes quantidades de textos imagéticos, como a contemporânea. Observemos o principal site exclusivo para a publicação online de fanfictions, o www.fanfiction.net, no momento em que esta pesquisa é redigida e comparemos seus números com os coletados acerca de cinco anos atrás, por ocasião da elaboração da dissertação de mestrado de nossa autoria. O site se autodenomina, no sistema de buscas do Google, “o maior arquivo e fórum de fanfictions do mundo, onde os autores e leitores de fanfic ao redor do globo se encontram para compartilhar sua paixão”30. Ao acessá-lo, encontramos como “subtítulo” ao seu nome o instigante convite: “liberte sua imaginação”31. Em outubro de 2004 este site apresentava um acervo de 905,686 histórias depositadas32. Atualmente este acervo atinge a soma de 2.711.08833, o que significa um espantoso aumento de duzentos por cento em cerca de cinco anos, bem como várias modificações visando oferecer ainda mais comodidade para o prospectivo leitor. Trinta e três são os idiomas nos quais há fanfictions depositadas, sendo eles, na ordem em que aparecem no menu, inglês, espanhol, francês, português, alemão, russo, holandês, italiano, suíço, polonês, filipino, húngaro, indonésio, finlandês, chinês, japonês, tcheco, norueguês, hebreu, dinamarquês, catalão, croata, árabe, romeno, turco, escandinavo, búlgaro, sérvio, latim, grego, albanês, punjabi e farsi (persa). As categorias utilizadas para a classificação das histórias postadas aumentaram de oito para nove, sendo elas: Anime/Mangá (desenhos em estilo japonês, impressos ou televisionados), o campeão de postagens, com impressionantes 874.504 fics; Books (livros) com significativos 698.238 fics; Cartoons (desenhos em estilo ocidental, televisionados) com 167.435 fics; Comics (desenhos em estilo ocidental, impressos) com 27.019 fics; Games, que inclui jogos on e off line, inclusive do tipo RPG, com 222.943 fics; Movies (filmes de todos os gêneros), com 164.540 fics; TV shows, basicamente seriados e mini séries, com 541.177 fics postadas; Misc (miscelânea), contendo histórias que unem personagens e cenários oriundos de diferentes originais em uma única trama, com 93.408 fics, e a nova categoria 30 World's largest fanfiction archive and forum where fanfic writers and readers around the globe gather to share their passion. Tradução nossa. GOOGLE. www.fanfiction.net. Disponível em: . Acesso em: 19 ago. 2009. 31 Unleash your imagination. Tradução nossa. FANFICTION.NET. FanFiction.Net: unleash your imagination. Disponível em: . Acesso em: 19 ago. 2009. 32 VARGAS, O fenômeno fanfiction, p. 25. 33 O site não fornece tais dados, que foram conseguidos pela autora através da soma dos totais de fics depositadas sob cada título de cada categoria elencada. FANFICTION.NET, Fanfiction.Net, 2009. 34 denominada Peças de teatro/Musicais, com 15.232 fics, demonstrando o quanto o imaginário de um leitor/espectador pode se enamorar de um texto apresentado sob as mais diferentes formas e interagir com ele valendo-se do meio mais barato e acessível de fazê-lo, a palavra escrita. Possivelmente estes autores/espectadores de peças teatrais quisessem apresentar suas próprias montagens, seus próprios vídeos de uma história da qual são fãs, mas o acesso a essas mídias é muito complexo. O mesmo vale para um amante dos quadrinhos ocidentais, como o Homem-Aranha, que não tem o talento necessário para desenhar a aventura que tão carinhosamente teceu para seu personagem preferido. Para todos estes, a possibilidade de escrever a história imaginada e compartilhá-la com outros é uma grande alegria, mesmo que isso implique na transposição de uma mídia alternativa, como um anime, para uma tradicional, como a narrativa escrita, ainda que publicada num suporte tecnologicamente avançado, como a internet. Todas as categorias mencionadas são repetidas numa outra barra dedicada exclusivamente às crossovers, o que nos fornece ainda mais dados sobre a grandiosidade da dimensão deste subgênero em termos de produção e acesso. Uma vez que você decida ler crossovers de Harry Potter – ainda o livro de maior acervo na categoria Books, com 417,787 fics34, representando cerca de sessenta por cento do acervo total daquela categoria – por exemplo, um novo menu de filtros lhe será oferecido de forma que você possa escolher ler crossovers entre os livros de Harry Potter e filmes, ou os livros de Harry Potter e animes. É interessante observarmos aqui, uma vez que fizemos referência aos livros da série Harry Potter, escritos pela inglesa J. K. Rowling, como sendo o campeão absoluto de postagens de fics naquele site há mais de cinco anos35, que o segundo lugar em postagens mudou em razão do aparecimento de um novo fenômeno editorial, a série Crepúsculo, de autoria da americana Stephenie Meyer, que já conta com 102.222 fics publicadas na categoria Books. O senhor dos anéis, uma obra em três volumes de autoria do também inglês J. R. R. Tolkien, ocupava o segundo lugar em postagens por ocasião da primeira pesquisa que realizamos sobre fanfictions, naquele site. Na época36, O senhor dos anéis contava com 34.275 fics disponíveis, número que não se alterou tão significativamente nos últimos anos, estando agora seu acervo com 42.533 histórias. Crossovers de Harry Potter e o O senhor dos anéis não costumavam ser incomuns, mas o maior número de crossovers dos livros de Harry Potter com outros livros é justamente com os da série Crepúsculo, totalizado 744 histórias postadas. 34 FANFICTION.NET, Fanfiction.Net, 2009. 35 159.325 fanfictions postadas em 3 de novembro de 2004. VARGAS, O fenômeno fanfiction, p. 25. 36 Ibidem, p. 25. 35 Embora a série Crepúsculo se diferencie muito da série Harry Potter em termos de trama, cenário e narrativa, ambas as obras oferecem universos alternativos aos leitores adolescentes e suas idiossincrasias e talvez resida aí a vontade de juntar – ou de juntar-se a – seus personagens preferidos em uma única aventura. Utilizando a classificação organizada por Henry Jenkins acerca dos dez modos mais recorrentes de reinterpretação das séries televisionadas através das fanfictions, compreendemos as crossovers como um estilo de texto onde [...] são as fronteiras entre diferentes textos, e textos em diferentes suportes, que são dissipadas. Personagens de Harry Potter podem ser colocados no contexto de outras histórias, como O senhor dos anéis (livros e filmes) ou como Buffy – a caça vampiros (seriado televisivo). É bastante comum serem encontradas crossovers escritas utilizando como base textos contemporâneos entre si, de grande sucesso comercial, como os anteriormente citados. Isso se dá em virtude de esses textos constituírem parte importante do imaginário do autor de fanfictions, que demonstra seu apreço por eles juntando-os numa mesma história, na qual por vezes um personagem original - normalmente um alter-ego do autor – ganha a oportunidade de ser, por exemplo, grande amigo de Harry Potter e namorado de Buffy. Trata-se da construção de uma intertextualidade entre textos populares, comuns a jovens de diferentes culturas em virtude da globalização do consumo das produções norteamericanas37. A decisão de criar um menu exclusivo para as crossovers e depositá-las de forma a facilitar a postagem por parte do autor e a encontrabilidade, por parte do leitor, é recente, datando de março do corrente ano. Os administradores do site explicitam seu desejo de que os escritores de crossovers sejam tratados como “cidadãos de primeira categoria” e explicam sua definição para este subgênero, como sendo “histórias que contém temas e/ou personagens provenientes de duas categorias distintas”38. 37 VARGAS, O fenômeno fanfiction, p. 65-66. 38 March 27, 2009 - Feature Announcement: We are happy to announce the first-phase launch of a comprehensive support for "Crossover" fanfiction. Crossovers, as defined by the site, are stories contaning themes and/or characters from two distinct categories. Members may now login to create a crossover story or convert an existing story to a crossover. We encourage everyone to start submitting their crossovers and those using "Misc/Crossover" categories as a workaround to properly convert their entries. March 29, 2009 -- We have just launched full browsing support for Crossover archives. Please send any and all feedback to our support email. Our goal is to ensure crossover writers are treated as first-class citizens. Search engine and Community support for crossovers will be ready within the week. Março, 27, 2009 -- Anúncio de atração: estamos felizes de anunciar a primeira fase de lançamento de um sistema amplo de apoio às fanfictions do tipo Crossover. Crossovers, como definido pelo site, são histórias contendo temas e/ou personagens de duas categorias distintas. Os membros agora podem fazer o login para criar uma história crossover ou para converter uma história já existente em crossover. Nós encorajamos todos a começarem a submeter seus crossovers e àqueles que usam as categorias ―Misc/Crossover‖ como alternativa, a converter suas aberturas de texto apropriadamente. Março 29, 2009 – Acabamos de lancer um apoio de browsing completo para arquivos crossover. Por favor, enviem seus comentários para o nosso e-mail de suporte. Nosso objetivo é assegurar que os 36 Prova da importância que o site confere não apenas aos autores que lá depositam, mas também aos seus leitores é o uso de recursos para aumentar o conforto da leitura do texto na tela, que pode se tornar bastante prolongado, uma vez que algumas fics apresentam a mesma estrutura de longos romances, com vários capítulos, que resultariam em mais de um volume, caso impressas. Um menu no alto da tela, à direita, oferece as seguintes possibilidades de customização da aparência do conteúdo a ser lido: em primeiro lugar está a escolha da fonte, que pode ser Verdana, Serif ou Sans-serif e o seu tamanho, que pode ser aumentado ou diminuído com a aproximação ou retração dos caracteres. Em segundo lugar, o leitor pode escolher se deseja ler o texto do tamanho horizontal da tela, ou se deseja reduzi-lo a ¾ de tela ou a meia tela, centralizando-o completamente, o que diminui o desconforto de ler uma página muito larga, embora o número de vezes que a barra de rolagem vertical tenha de ser acionada, aumente. Em um terceiro momento pode-se, ainda, aumentar ou diminuir o espaçamento entre as linhas, evitando o possível embaralhamento produzido pela leitura de um texto longo. Por último, adicionando aos recursos de seu site um hábito comum entre os internautas, a utilização do recurso “selecionar” para possibilitar a leitura da letra branca sobre a tela escura, o fanfiction.net oferece a possibilidade de, ao clique do mouse, selecionar fundo claro (branco, letra preta) ou escuro (preto, letra branca) para a leitura. O site ainda oferece ao leitor um dicionário monolíngue da língua inglesa, acessível em todas as páginas de leitura. Ao passar o mouse sobre a palavra Dictionary, no menu principal, abre-se uma caixa onde se pode digitar ou colar a palavra desconhecida e clicar em search (busca). Para leituras mais longas e para leituras simultâneas de mais de uma fic, o site oferece um serviço de “marcador de histórias”, que teria sido solicitado pelos internautas. O post dos administradores do site informa que Com o marcador de histórias qualquer usuário pode salvar o lugar onde se encontra no momento [da leitura] e retornar para continuar lendo mais tarde. Membros não precisam fazer login para acessar esse serviço. Para acessar o serviço de marcador de histórias use os links “Ver” e “Adicionar” no alto à direita das páginas da história. Clicando em “Ver”, você vai ter permissão para acessar suas marcações de história em andamento. Por favor, observe que há um limite de 20 e nós iremos remover o mais antigo se você tentar adicionar um novo, além do limite (Tradução nossa)39. escritores de crossover sejam tratados como cidadãos de primeira classe. O menu de buscas e suporte de Comunidade para as crossovers ficarão prontos dentro de uma semana. (Tradução nossa). FANFICTION.NET, Fanfiction.Net, 2009. 39 With storymarks, any user can save their current spot and return to continue their reading at a later time. Members do not need to login to access this feature. To access the storymark feature, use the "View" and "Add" links at the top right of story pages. Clicking view will allow you to access your current storymarks. Please note 37 As informações deste post também são significativas do volume de visitas do site, que, infelizmente, não é divulgado, e nos levam a imaginar o número de horas despendidas na frente da tela do computador por leitores de fanfiction que, diferentemente do que é creditado ao internauta comum, parecem não navegar erraticamente quando estão envolvidos com a leitura, de forma semelhante àqueles que leem livros impressos. O menu de buscas de fanfictions também é bastante sofisticado. Podemos procurar uma fic, um autor específico, um fórum ou uma comunidade. Para se encontrar uma história podemos nos utilizar de palavras-chave inclusive com expressões entre aspas, como em qualquer sistema de buscas, porém explicitando as palavras que não desejamos ver incluídas e indicando se elas podem ser encontradas no título, no sumário que antecede as histórias ou em ambos. Há ainda a possibilidade de escolhermos a categoria em que buscamos nossa fanfiction, como em Games, ou a sub-categoria em que esperamos encontrá-la, como “A Cinderella story” (filme), ou “Alexandre Dumas” um autor de clássicos de aventura, cujas obras inspiram muitas fanfics abrigadas na categoria Books. Por último, ainda é possível organizar os títulos que serão disponibilizados pela busca em “data da postagem” ou em “última atualização”. Para verificar seu funcionamento, decidimos procurar uma história onde constassem as palavras-chave Harry e Draco, personagens de Harry Potter, e slash, o subgênero erótico homossexual central a esta pesquisa. Excluímos a palavra “girlfriend”, escolhemos a categoria Books e pedimos os resultados organizados por data de publicação. Seis mil e quarenta e um resultados foram retornados e, curiosamente, a mais recente postagem, portanto a primeira da lista, datada do dia 22 de agosto de 2009, o exato momento em que a presente pesquisa é realizada, está em português do Brasil e se intitula Fragmentos intemporais. Na tela de resultados reproduzida a seguir, podemos observar um menu vertical, à direita, onde a pesquisa pode ser filtrada, de modo que o leitor não precise procurar em 121 páginas, nesse caso, para encontrar o tipo de fic que procura. Os resultados retornados podem ser filtrados por Categoria (Harry Potter apenas ou “crossed” com outras histórias), Língua, Gênero (literário, próprio do universo fanfiqueiro), Status (completa ou em andamento), Classificação (por idade, de acordo com o conteúdo da fic) e por tamanho (em bytes). there is currently a limit of 20 storymarks and we will remove the oldest one if you attempt to add one over the limit.. FANFICTION.NET, Fanfiction.Net, 2009. 38 Ilustração 1 – Busca no Fanfiction.net Fonte: FANFICTION.NET, 2009. Escolhemos o filtro da língua apenas em busca de fanfictions do subgênero slash para Harry Potter, possivelmente escritas por autores brasileiros, embora reconheçamos que o português também é utilizado por outros países e que, sendo Harry Potter um fenômeno de alcance mundial, é provável que haja histórias provenientes de outros países que não o Brasil 39 dentre os 186 resultados40. Ao verificarmos as histórias constantes na primeira página, contudo, 50 no total, encontramos apenas fics escritas em língua portuguesa do Brasil, incluindo uma tradução de língua inglesa41. Todas essas fanfics exibem reviews, que são uma evidência de que não apenas foram lidas, como seus leitores foram participativos e interessados o bastante para deixar um post para o autor. É difícil mensurarmos, mesmo em um único site e numa única categoria, slash de Harry Potter, quantos são os autores brasileiros que escrevem fanfictions, principalmente se levarmos em conta que parte deles prefere publicar em inglês. Tal impossibilidade, na verdade, também nos dá indicativos do tamanho da recepção e da adesão a este fenômeno no Brasil. Embora já soubéssemos, em virtude de estudo anteriormente realizado, que abundam autores brasileiros de fanfiction na internet, percebemos agora que o subgênero slash também encontra muitos adeptos em língua portuguesa do Brasil, assunto ao qual voltaremos posteriormente nesta pesquisa. Por termos procurado especificamente o subgênero slash, deixamos de lado os outros gêneros literários oferecidos neste site. Embora cada website e cada fandom possa atualizar a nomenclatura dos gêneros literários de acordo com suas necessidades, de maneira geral os disponíveis no fanfiction.net são uma representação significativa daqueles utilizados pelo fandom em geral. São eles: Aventura, Angst (refere-se à angústia e a temas deprimentes, especialmente perdas em geral, seja de um amor ou de uma amizade, inclusive por morte), Crime, Drama, Família, Fantasia, Amizade, Geral, Horror, Humor, Hurt/Confort (refere-se à Dor e Consolação. São histórias nas quais um personagem sofre emocionalmente – ou mesmo fisicamente – e outro o consola. Muito frequentes no subgênero slash), Mistério, Paródia, Poesia, Romance, Sci-Fi (ficção científica), Espiritual, Sobrenatural, Suspense, Tragédia e Western (faroeste). O slash, embora encontrado em abundância, não faz parte dos gêneros oficialmente aceitos pelo site. Na verdade, houve uma época em que o fanfiction.net se recusava terminantmente a aceitar fics desse gênero, solicitando mesmo a ajuda dos internautas para encontrá-las e deletá-las42, o que ocasionou a abertura de websites exclusivamente dedicados 40 FANFICTION.NET. Projeto Sectumsempra de Amor Não Dói - Parte I. Disponível em: . Acesso em: 08 ago. 2009. 41 37. The Spy Series » by Paula Lirio reviews. TRADUÇÃO! Uma série de ficlets sobre Harry e Draco, e o desabrochar do relacionamento deles. Slash. Harry Potter - Rated: K - Portuguese - Romance - Chapters: 5 Words: 14,282 - Reviews: 46 - Updated: 11-11-07 - Published: 12-31-05 - Harry P. & Draco M. FANFICTION.NET, Fanfiction.net, 2009. 42 Entretanto, não é em todos os círculos de fãs que as fanfictions do gênero slash são bem aceitas. Comprovando a existência de restrições ao gênero, incluindo ameaças judiciais de parte dos autores dos originais, o fanfiction.net proibiu a postagem e retirou do ar todas as fanfictions do gênero slash e NC-17 em setembro de 40 ao tema, como o Restricted Section43, dentre outros. Acreditamos que a profusão de línguas postadas e a insistência dos autores e leitores de slash em postar as histórias e driblar os webmasters deve ter resultado em uma política de “ouvidos moucos” por parte dos administradores que, frente à impossibilidade de controlar o conteúdo de tudo o que é postado diariamente, optaram por avisar os leitores através de um sistema de classificação de conteúdo, que, no entanto, parece ter ficado a cargo, sobretudo, do discernimento do autor que realiza a postagem. Caso seja denunciado, contudo, o slasher pode perder tudo o que postou sem sequer receber uma notificação a respeito. Voltaremos a tratar dessa polêmica decisão do fanfiction.net no capítulo em que trataremos especificamente do slash. Em que pese a diversidade de gêneros aceitos pelo site, percebemos a ausência de dois, um bastante comum ao universo fanfiqueiro brasileiro, as songfics, e o outro, alvo de muitas controvérsias, pertencentes ao universo fanfiqueiro em geral, denominado Mary Sue. Songfics são histórias bastante populares entre adolescentes nas quais se utiliza uma música como pano de fundo ou como mote para o enredo, que incorpora a letra como parte da escrita, utilizando-a no corpo do texto ou sob a forma de epígrafes, recurso que visa contextualizar os sentimentos dos personagens. O gênero remete aos musicais, mas com uma estrutura muito mais simples. Já a chamada fan fiction Mary Sue é, talvez, mais do que um subgênero dessa literatura, uma categoria de análise da mesma, desenvolvida integralmente dentro dos fandons e utilizada, até onde saibamos, exclusivamente em seu universo. É uma típica teoria que se pode chamar de “vernacular”, de acordo com a concepção de Thomas McLaughlin, pesquisador norte-americano, autor de Street smarts and critical theory, ainda sem tradução no Brasil. Nesse livro Mclaughlin analisa teorizações e questionamentos apresentados por consumidores dos produtos da indústria cultural que são vistos não como receptores passivos de seriados televisivos e afins, mas como fãs engajados inclusive em aprimorar o produto que desejam consumir. A Mary Sue é um típico exemplo dessa teorização séria, uma vez que surgiu no seio de um determinado movimento através da discussão e análise realizada pelos 2002. NC-17 é como são classificadas as fanfictions que descrevam cenas de sexo e/ou violência entre casais heterossexuais. [...] A decisão do fanfiction.net de proibir a postagem de fanfictions do gênero slash ou NC17, teria sido motivada pela pressão dos detentores dos direitos autorais dos originais que servem de base para esse tipo de fanfiction, com o objetivo de evitar retaliações judiciais, e é mantida até hoje. Mesmo assim, é possível encontrar slash postado naquele website em outras línguas que não a inglesa, inclusive em português, até mesmo com tramas envolvendo casos de abusos contra crianças e/ou incesto, notadamente nas histórias baseadas na série Harry Potter, a mais popular para escritores brasileiros de fanfiction. Os gerenciadores do website solicitam que essas irregularidades sejam denunciadas pelos leitores, para que eles possam retirar as fanfictions de seus arquivos. VARGAS, O fenômeno fanfiction, p. 25. 43 RESTRICTED SECTION. Restricted section.com. Disponível em: . Acesso em: 2 set. 2009. 41 seus membros no calor do questionamento não apenas do texto canônico, mas de suas próprias atividades como fãs. Uma Mary Sue, ou uma fanfic desse gênero, geralmente não é bem recebida entre os fãs por ser considerada um recurso “fácil” para o autor que apenas tenciona inserir a si mesmo na trama, embora também existam seus partidários. A origem desse personagem, como toda a base das fanfictions, remonta às primeiras fics escritas sobre o seriado Jornada nas Estrelas, no qual havia um personagem com este nome. As informações disponibilizadas pelos membros de diferentes fandons nos ensinam que “uma Mary Sue e sua contrapartida masculina, Gary Stu, é um personagem original que, no entanto, configura uma representação idealizada do autor, uma espécie de alterego excessivamente perfeito, irreal e destoante do contexto da história”44. Há, inclusive, um excepcional teste online que está no ar há mais de dez anos (primeiramente postado em 1997), que ensina de forma irônica como reconhecer se você está escrevendo uma Mary Sue. O teste é dividido em sete longas seções, seguidas por “Perguntas Ocasionalmente Feitas” e conta atualmente com 107 comentários, em sua maioria, elogiosos. Ele se encontra reescrito especificamente para o fandom de Gargoyles, uma série animada televisionada nos EUA, mas basta substituir os personagens ou situações citadas por aqueles pertencentes a outros fandons e utilizá-lo, como modelo. Na primeira seção, denominada The name game (O jogo do nome), a linguagem utilizada pela autora para chamar a atenção dos autores mais incautos já no início do texto faz lembrar as famosas (e cultuadas, pois já são canônicas na cultura pop) regras do filme O Clube da Luta45, para o qual há um enorme fandom online, produtor de muitas fanfics: O personagem leva o seu nome? (Pode ser o seu primeiro nome, o seu nome do meio, ou o nome que você utiliza para entrar em um chat ou irc) Se este for o caso, pare agora. Largue o seu lápis (ou mouse?) e comece o seu teste. Não nomeie o personagem com o seu nome. Não nomeie a você mesmo com o nome do seu personagem. Não me importa qual seja a sua exceção. (grifos no original) (Tradução nossa).46. 44 VARGAS, O fenômeno fanfiction, p. 41. 45 “The first rule of Fight Club is: you do not talk about Fight Club. The second rule of Fight Club is: you DO NOT talk about Fight Club”. O CLUBE DA LUTA. Diretor: David Fincher. Produção: Ross Bell, Cean Chaffin e Art Linson. Estados Unidos, Fox 2000 Pictures, 1999. 46 Is the character named after you? (This can be your first name, middle name, or the name you go by in chat or irc.) If so, stop now. Put your pencil (mouse?) down and turn in your test. [10] DO NOT NAME YOUR CHARACTER AFTER YOURSELF. DO NOT NAME YOURSELF AFTER YOUR CHARACTER. I DON'T CARE WHAT YOUR EXCEPTION IS. FIREFOX NEWS. The (Original) Mary Sue Litmus Test. Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2009. 42 As outras seções são nomeadas Atributos físicos, Características pessoais, Super poderes, A conexão do amor, O mundo real e o seu personagem e o Plano diabólico e bem merecem a visita de autores e aspirantes a escritores que frequentam oficinas para aprender a escrever ficção, no mundo não virtual. A primeira pergunta do debochado OAQ (Ocasionally Asked Questions em oposição ao tradicional FAQ – Frequently Asked Questions) esclarece o ponto de vista da autora quanto às razões pelas quais fics Mary Sue não deveriam ser escritas, ao mesmo tempo que fornece evidências de como as fanfictions podem ser consideradas uma atividade séria por parte do fandom no que concerne à preocupação com a qualidade daquilo que é postado. A autora responde a seguinte pergunta: Por que as Mary Sues são ruins? Eu só estou escrevendo para me divertir. Em primeiro lugar, elas não são sempre ruins. Mary Sues são uma maneira fácil e divertida de começar a escrever histórias sobre nossos personagens favoritos. O que poderia ser mais simples como ideia para uma história do que fingir que você está andando com aquelas pessoas legais do seu programa de TV favorito ou do seu filme favorito? O problema é que isto já foi feito em demasia. Tantas pessoas começaram dessa maneira e publicaram suas histórias que o personagem é um clichê que caminha, fala, se angustia e tem olhos cor de violeta47. Ela é chata para aqueles dentre nós que já leram muita fanfiction. (E ele também) Se você está escrevendo para sua própria diversão e não como uma forma de aprender a escrever como profissão, então, sem dúvida, continue com o mesmo estilo. No entanto, se você quer melhorar suas habilidades, em algum momento você vai ter que aprender sobre o desenvolvimento apropriado de personagem e não utilizar apenas uma infância infeliz e um temperamento difícil como substituto. É difícil e leva tempo. Mary Sues são muito mais fáceis de se fazer, mas, via de regra, elas denotam uma escrita preguiçosa. Pessoalmente, não tenho tempo a perder com a sua história se eu já sei tudo sobre o seu Personagem Novinho em Folha e como ele/ela irá salvar o dia, então, se eu vejo uma Mary Sue, paro de ler. Isso é o que eu faço(Tradução nossa)48. 47 Uma referência ao romance Through Violet Eyes, de Stephen Woodworth, onde uma minoria cujos olhos são da cor violeta, tem a habilidade de se comunicar com os mortos. WOODWORTH, Stephen. Through Violet Eyes. USA: Dell, 2004. 48 Occasionally Asked Questions Why are Mary Sues bad? I'm just writing to have a good time. First, they're not always bad. Mary Sues are a fun, easy way to start writing stories about our favorite characters. What could be simpler for a story idea than pretending you're hanging out with the cool people on your favorite show or in your favorite movie? The problem is that it's overdone. So many people started out this way, and made the stories public, that the character is a walking, talking, angsting, violet-eyed cliche. She's dull to those of us who've read a lot of fanfic. (And so's he.) If you're writing for your own amusement, and not as a way of learning to write as a profession, then by all means, continue with this same style. However, if you want to improve your abilities, you're eventually going to have to learn proper character development, and not just use a sad upbringing and a fiery temper as a substitute. It's hard, and it takes time. Mary Sues are much easier to do, but as a rule, they show lazy writing. Personally, I don't have time to wade through your story if I already know everything about your Neat New Character and how s/he is going to save the day, so if I see an MS, I'm going to stop reading. That's me. FIREFOX NEWS, The (Original) Mary Sue Litmus Test, 2009. 43 É possível que haja um imenso número de Mary Sues postadas no fanfiction.net, porque, como já mencionamos, os administradores do site deixam a cargo do autor a maior parte da responsabilidade sobre o conteúdo e a forma das histórias postadas e, embora haja oferta de Beta-readers, o acesso a eles não é obrigatório em sites do porte do Sugar Quill49. É diferente o caso do Potterish50, conhecido site brasileiro dedicado ao fandom de Harry Potter, onde a betagem das fics é incentivada, mas não obrigatória, conforme e-mail enviado pelo webmaster.51 Faz-se interessante compararmos os gêneros literários oferecidos pelo fanfiction.net para a organização dos escritores e leitores com os elencados pelo brasileiro Floreios e Borrões52, que pode ser chamado de biblioteca de fanfictions do Potterish, o mais antigo website com informações sobre Harry Potter em língua portuguesa em atividade na internet. São sete anos de um site bastante complexo e diversificado, que ganhou inclusive um tipo de prêmio da autora da série Harry Potter, J K Rowling, que o mencionou em seu website oficial53 como tendo sido recomendado pelos seus fãs latino- americanos e reconhecendo sua responsabilidade e expertise em Harry Potter. Por termos acompanhado as dificuldades enfrentadas por sites nacionais com grandes acervos (milhares de fanfictions), para se manterem no ar, como o conhecido Aliança Três Vassouras, (no momento este site encontra-se desativado), compreendemos como sete anos de internet significam muito em termos de fandom nacional. 49 THE SUGAR QUILL. Welcome to the Sugar Quill!. Disponível em: . Acesso em: 08 jul. 2009. 50 POTTERISH. Potterish. Disponível em: . Acesso em: 08 jul. 2009. 51 Ola Maria, respondendo as suas perguntas: 1) Nao e obrigatorio passar a fic por um beta-reader, apesar de ser recomendavel e motivado dentro do FeB, nao e obrigatorio. Agora, como nao possuimos um sistema de beta-reader dentro do proprio FeB, mas sim utilizamos o nosso forum para as betagens, isso ainda nao esta sendo bem utilizado. Porem, adicionar um sistema de betagem completo dentro do FeB esta nos planos de modificacoes a serem realizadas para a versao 4.0. Voce pode acompanhar as atualizacoes aqui: http://trac.potterish.com/fanfic/roadmap 2) Nao, o FeB atualmente nao possui uma estrutura de membros bem elaborada para fazer esse tipo de verificacao. Infelizmente ainda nao possuimos um sistema administrativo que permita Moderadores realizar essa fitlragem. Todavia, toda Fic que possui censura 18+ possui um alerta informando que o conteudo pode ser ofensivo e todos os usuarios estao cientes disso. Concordo que, estamos atualmente falhos nessa sessao, mas tambem possuimos planos para aprimorar e deixar esse conteudo mais restrito aos usuarios, assim como adicionar regras e filtros de conteudo que possam ser verificados e banidos, se necessario, por Moderadores. Precisando de mais alguma ajuda em seu trabalho, por favor nos informe. Fernando Webmaster Potterish NUNES FILHO, Fernando. Título do E-mail. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 28 de agosto de 2010. 52 FLOREIOS E BORRÕES. Floreios E Borrões. Disponível em: . Acesso em: 25 ago. 2009. 53 JK ROWLING. Oficial Site. Disponível em: . Acesso em: 26 ago. 2009. 44 A escolha da observação da Floreios e Borrões se dá em virtude de Harry Potter ainda ser o maior catalisador da escrita e da leitura de fanfictions no Brasil, embora séries televisivas e outros produtos de grande sucesso comercial, como a série Crepúsculo, também encontrem muitos brasileiros dedicados a sua apropriação e reescritura. Além da Floreios e Borrões, – nome da livraria onde os personagens de Harry Potter compravam o material escolar bruxo antes de cada ano letivo – que atualmente conta com 17.166 fanfictions em seu acervo, o Potterish ainda apresenta um fórum chamado de Grimauld Place – local secreto onde se escondiam os bruxos que lutavam contra o mal, na série – e um detalhado dicionário sobre Harry Potter batizado com o nome da bibliotecária de Hogwarts, Madame Pince. A Floreios e Borrões classifica as fics recebidas dentre os seguintes gêneros literários, que totalizam doze: Romance, sem dúvida o gênero mais popular, que conta com 9.853 histórias postadas; Aventura, com 1.216 fics; Drama, 916 fics; Comédia, 858; Songfics, 808, um número que comprova a popularidade do gênero entre os brasileiros; Universo Alternativo, com 647; Slash, ou fics para maiores de 18, com 263 histórias; Pós Hogwarts, histórias sobre acontecimentos imaginados após o termino da série, com 291 fics; Suspense, com 178 e Terror, com apenas 60. Há, ainda, duas curiosas categorias cujo conteúdo é de difícil distinção. Trata-se de Geral e Outras, nas quais, aparentemente, são depositadas fanfictions cujo conteúdo foge aos parâmetros dos outros gêneros. Em Geral, há 1.525 fics postadas e em Outras, 541, totalizando 2.066 fanfictions que, nos parece, não estão apropriadamente categorizadas. Se comparados aos vinte e um gêneros literários disponibilizados pelo fanfiction.net, observamos que é possível que esses doze gêneros na verdade não deem conta de todas as nuances disponíveis nas histórias produzidas. No que se refere ao slash, de acordo com o e-mail enviado pelo webmaster o site os aceita sem restrições, independentemente do conteúdo das histórias sob essa bandeira, cujo conteúdo pode variar do incesto ao sexo levemente sugerido, passando pelo sadomasoquismo e por tramas contendo menores de idade (muito comuns no fandom potteriano). A ausência de restrições, no entanto, se deve mais à falta de pessoal para ajudar a administrar o site do que a uma política interna. No entanto, consciente do conteúdo inapropriado a todos os públicos inerente às fanfictions slash, os webmasters alertam seus leitores para o conteúdo potencialmente ofensivo das fics classificadas para maiores de 18 anos. O sistema de classificação de conteúdo por idade é fundamental para todo o universo fanfiqueiro e as alterações não são muito significativas entre um site e outro, justamente para que os prospectivos leitores possam saber o que esperar em termos de conteúdo da fanfiction escolhida para a leitura. Na Floreios e Borrões, entretanto, a única classificação visível é a que 45 avisa sobre fics com conteúdo exclusivo para maiores de 18 anos, por conter cenas de sexo e/ou violência. Já o Sugar Quill54, site muito elogiado por Henry Jenkins cujo objetivo é promover discussões “inteligentes e bem pensadas” sobre Harry Potter e é muito cioso do conteúdo que aceita postar – não aceitando, inclusive, fics slash – utiliza, como a absoluta maioria dos sites de postagem de fanfics, um sistema classificatório tomado de empréstimo da indústria cinematográfica norte-americana, congregada na Motion Picture Association of América (MPAA)55, que estabelece a faixa etária para a qual os conteúdos dos filmes são apropriados. Assim, a letra G (general) – estabelece o conteúdo não sujeito a restrições, disponível para audiências em geral; PG – (parental guidance) indica que o conteúdo pode não ser apropriado para crianças, o que implica na mediação dos pais para a realização daquela leitura; PG13 – (parents strongly cautioned) alerta os pais para conteúdo inapropriado para menores de 13 anos de idade; e R (restricted), para aquelas impróprias para menores de idade, que só poderiam ter acesso a elas se acompanhados de um dos pais ou outro responsável. Há, ainda, as fics classificadas como NC-17, que não são aceitas pelo Sugar Quill – dentre as quais está o subgênero slash – por conterem sexo explícito e/ou cenas de violência. Os sites que utilizamos para exemplificar o funcionamento do universo fanfiqueiro neste capítulo são de pleno conhecimento de muitos dos integrantes do fandom potteriano brasileiro, o que nos dá uma idéia de a qual classe social pertencem os fãs envolvidos com essa prática. O uso da língua inglesa para a navegação em fandons internacionais não é raro e há até quem se aventure a escrever fics naquela língua e obtenha boa recepção, como veremos no capítulo a seguir. 54 The Sugar Quill attempts to post ratings information in the header of each story when appropriate. Ratings roughly follow the system used by the Motion Picture Association of America. We generally interpret these ratings as follows: G – general audience; PG – some material may be inappropriate for children; PG13 – some material may be inappropriate for people under 13; R – material may be not be appropriate for people under 17. 55 MPAA, Motion Picture Association of America. Disponível em: . Acesso em 02 out. 2009. 2 “I SOLEMNLY SWEAR I AM UP TO NO GOOD”1: A FAN FICTION SLASH Dentre os brasileiros que têm acesso à internet, à escolarização adequada e são consumidores de produtos relacionados à cultura pop, muitos são os que parecem gostar de escrever e de ler fanfictions. Prova disso é que em cinco anos o número de fics de Harry Potter postadas em português no fanfiction.net quadruplicou, passando de 2.824 para 11.400 histórias. Contudo, como o site não permite a busca somente por língua, sem associá-la a um gênero e a uma categoria, não podemos auferir números totais sobre as fics postadas em português, sob todos os títulos possíveis, considerando as limitações de prazo da presente pesquisa. A fim de exemplificar essa impossibilidade, observemos que na categoria books somamos, manualmente, 816 títulos de livros sob os quais fanfics são postadas, o que significaria 816 buscas de fics em português, sendo que, dentre as encontradas, seria preciso procurar a existência daquelas em língua portuguesa do Brasil – procedimento que se referiria a uma única categoria. Esses títulos variam desde o já citado campeão de postagens, Harry Potter, até a Bíblia, passando por clássicos como Pride and prejudice (Orgulho e preconceito, de Jane Austen) e por best-sellers como The princess diaries (O diário da princesa, de Meg Cabot). Entretanto, a simples checagem dessa pequena lista revelou que sob todos os quatro títulos elencados é possível encontrar fanfictions em língua portuguesa, sendo que, muitas delas, em português do Brasil. Essa constatação nos levou a perguntar qual seria o grau de envolvimento da comunidade fanfiqueira nacional com um subgênero curioso, embora muito marginalizado pela sua releitura ímpar – leia-se homossexual – do cânone, o slash. Para nossa surpresa, a produção encontrada não se revelou escassa. A fim de nos certificarmos dessa afirmação, decidimos realizar nova pesquisa no fanfiction.net – o maior arquivo de fics da internet –, agora sobre a presença das fanfictions do tipo slash escritas em língua portuguesa. Nosso critério recaiu sobre as maiores produções de fan fiction de cada categoria, acreditando serem esses exemplos suficientemente significativos para produzir algumas deduções sobre a existência ou não de fics slash de autoria de brasileiros. Procuramos, em cada categoria (Books, Movies, TV shows, Cartoons, Comics, Plays/Musicals, Anime/Manga e Games), os dois títulos com maior número de postagens de 1 Proferido no enredo criado por J. K. Rowling na série Harry Potter – “Juro solenemente não fazer nada de bom” –, é um feitiço invocado pelos Marotos, grupo de amigos pertencentes à geração anterior à de Harry, do qual seu pai participava. Esse juramento era a chave para o funcionamento do Mapa dos Marotos, que possibilitava acompanhar toda a movimentação em Hogwarts, inclusive visualizando as passagens secretas. Para desfazer a visualização do mapa, ou seja, transformá-lo em um pergaminho em branco, a expressão necessária é “Malfeito feito!” (Mischief managed!). 47 fics, classificando-os em primeiro e segundo colocados, obtendo os resultados a seguir: em Books, Harry Potter (417.603) e Twilight (102.222) lideram as postagens; em Movies, Star wars (Guerra nas estrelas, 22.439) e Pirates of the Caribbean (Piratas do Caribe, 17.555) são os primeiros; em TV shows, o extinto seriado Buffy, the vampire slayer (Buffy, a caçavampiros, 36.457) ainda lidera em número de fics, seguida de Supernatural (26.645); em Cartoons, Teen titans (Jovens titãs, 23.729) é o primeiro em postagens, e X-Men: evolution (12.700) é o segundo; em Comics, o número de postagens é relativamente baixo, destacandose X-men (9.119) e Spider-man (Homem Aranha, 1.869); da mesma forma, em Plays/Musicals há um musical que se sobressai em relação aos demais títulos – Rent (6.638), seguido por Wicked (2.930); em Anime/Manga, Naruto encontra-se em primeiro lugar (205.437), tendo Inuyasha em segundo (88.585); finalmente, em Games, Kingdom Hearts (45.154) e Final fantasy VII (28.071) são os que possuem maior número de postagens. No caso da franquia Final fantasy, se somadas as fics dos quinze títulos da série disponíveis na categoria Game, essa ultrapassaria, em muito, o primeiro lugar, Kingdom hearts. Embora tivéssemos partido do pressuposto de que encontraríamos fanfics em língua portuguesa na maior parte das histórias acima elencadas – ou seja, fics criadas sobre alguns dos maiores sucessos comerciais dos últimos tempos –, muito nos surpreendeu o fato de que em todos os títulos supracitados havia fics disponíveis em português do Brasil. O próximo passo foi procurar, dentre as publicadas em português, fanfictions do subgênero slash escritas em língua portuguesa do Brasil. É importante frisar que não buscamos também as descritas como Yaoi ou Yuri – vocábulos oriundos de animes e mangas para descrever relacionamentos homossexuais masculinos e femininos, respectivamente. Atualmente, com a disseminação dos mangas, estas são palavras comumente usadas no universo fanfiqueiro por serem sinônimos de slash, termo cunhado nos EUA. Novamente, para nosso espanto, apenas sob o título Star Wars, na categoria Movies, e sob a peça Wicked, na categoria Plays/Musicals, não nos foi possível encontrar ao menos uma fic slash em língua portuguesa do Brasil. Em todos os demais títulos campeões de postagens havia a presença de fanfictions slash escritas por autores (presumidamente) brasileiros. Portanto, acreditamos que seja seguro afirmar que o slash encontrou muitos adeptos dentre os fanfiqueiros brasileiros, sendo que, embora Harry Potter seja a obra com maior produção de slash no Brasil, por ser o maior fandom, certamente não é a única. Quais, então, as características deste tipo de história, que conquistou tantos fãs brasileiros? O slash é, fundamentalmente, um subgênero de fan fiction, no qual os protagonistas envolvidos em uma trama erótica são necessariamente do mesmo sexo – 48 geralmente do sexo masculino. A escolha do relacionamento ―boy on boy‖, como o slash é chamado, se explica por ele ser escrito majoritariamente por mulheres. Compreendemos, portanto, o espanto que esse tipo de escrita causa naqueles que entram em contato com esse subgênero pela primeira vez. A palavra slash tem origem em uma convenção, sendo compreendida por todos os fãs do gênero fanfiction, da barra (slash, em inglês), que indica a união de dois personagens tomados de empréstimo de uma história comercialmente conhecida, introduzidos em uma nova história, de autoria de um fã, na qual formarão um par amoroso – um shipper. A princípio, os nomes dos personagens eram escritos por extenso, notadamente no caso dos personagens Kirk e Spock, do seriado Jornada nas Estrelas, aparentemente os primeiros protagonistas de uma fan fiction slash. Como a tendência de todos os fandons é simplificar códigos que são de conhecimento comum a todos os seus membros, os nomes ficaram reduzidos às iniciais: K/S. A mesma convenção é utilizada para outros tipos de fanfictions românticas, não homoeróticas, nas quais provavelmente tenha sido adotada em virtude de serem mais antigas e em maior número que o subgênero slash, apresentando grande quantidade de shippers. Embora agora saibamos que abundam fanfictions slash em língua portuguesa do Brasil, este subgênero ainda não foi estudado no País, o que nos levou a buscar material em língua inglesa, notadamente de autoria de pesquisadores norte-americanos, dentre os quais o volume de pesquisas sobre o tema é significativo, havendo até mesmo materiais anteriores ao advento da internet. Os estudiosos são unânimes em afirmar, no que se refere às origens do slash, que ele surgiu dentro do fandom de Star trek (televisionado no Brasil como Jornada nas estrelas), no início dos anos 70. Escritores de fan fiction à época começaram a debater, dentro do fandom e, subsequentemente, a sugerir, em seus textos, que os personagens Kirk e Spock pareciam se importar primordialmente um com outro, se observadas as oportunidades para o envolvimento com outros membros da série. Mesmo eventuais romances não exibiam a durabilidade e a confiabilidade existente na relação entre os dois. A profundidade e a solidez dessa amizade levou os fãs escritores a criarem o shipper K/S e fanfictions a partir dos personagens, explorando a possibilidade de haver sentimentos amorosos não revelados entre os dois e desenvolvendo intricadas situações em que os dois não veem outra saída – inclusive para salvar a vida de um deles, como na novela Desert heat, que abre a série de fanfictions denominada The cosmic fuck, de autoria de Gayle Feyrer – a não ser revelar seus verdadeiros sentimentos e ceder ao impulso sexual. 49 No exemplo anteriormente citado – um dos primeiros a circular entre fãs do seriado, muito antes da divulgação das fanfictions slash pela internet, remontando, portanto, ao tempo em que as histórias eram veiculadas em fanzines durante convenções realizadas em hotéis, nos Estados Unidos –, Kirk e Spock estão perdidos em um planeta deserto, sem chances de resgate imediato. Spock, que é membro da etnia Vulcão, entra em seu período de febre de acasalamento, ritual que acomete os vulcanianos a cada sete anos. Caso não encontrem alguém com quem possam se relacionar sexualmente de forma empática durante a febre, os vulcanianos se tornam violentos e podem, inclusive, morrer. É importante destacar que Pon Farr, como é chamada a febre de acasalamento, é um elemento canônico, tomado de empréstimo dos originais para a manipulação homosexual por parte dos escritores de slash, não consistindo em uma invenção criada dentro do fandom, ou seja, configurando-se como um fanon. Quando uma criação oriunda do fandom passa a ser regularmente aceita, como no caso do shipper K/S, ela passa a ser chamada de fanon, uma brincadeira com a palavra canon, que designa o cânone, em inglês. Da mesma forma que ocorre nos outros subgêneros de fanfiction, no slash os escritores também se revelaram extremamente ciosos do respeito ao cânone, e, ao utilizarem um elemento canônico em suas histórias, procuraram se manter o mais próximo possível dos detalhes que caracterizam esse elemento dentro do original. Fazendo um retrospecto, é possível dizer que com todos os elementos canônicos ao alcance dos escritores de fanfics não é de se admirar que em algum momento a criação de uma história amorosa entre Kirk e Spock tenha acontecido. Somemos a isso os libertários anos 702, quando a cultura da época incentivava ao experimento de novas possibilidades sexuais, em oposição ao até então considerado "correto" ou "moralmente aceitável" na sexualidade humana, e temos um terreno extremamente fértil no fandom de Star trek para a transposição de fantasias sexuais para o papel. Voltando à fan fiction Desert heat, utilizada como exemplo, assistimos como, ao passar o tempo, Pon Farr faz a tensão sexual subir, ao mesmo tempo em que ameaça a vida de 2 Uma cena antológica do filme Hair, de Milos Forman, nos vem à mente como exemplar da experimentação sexual como parte de uma postura ideológica nos anos 70. Trata-se da cena em que Woof é preso e responde ao questionamento da psiquiatra sobre sua sexualidade da seguinte forma: “Bem, eu não chutaria Mick Jagger para fora da minha cama, mas, hu, eu não sou homossexual, não.” A seguir a transcrição completa do diálogo. Prison Psychiatrist: And men? Woof: What do you mean...? Prison Psychiatrist: You have any sexual attraction towards men? Woof: You mean if I'm a homosexual or something like that? Prison Psychiatrist: Yeah. Woof: Well, I wouldn't kick Mick Jagger out of my bed, but uh, I'm not a homosexual, no. IMDB, The Internet Movie Database. Memorable quotes for Hair. Disponível em: . Acesso em: 8 out. 2009. 50 Spock. É clichê, na série televisiva, ou seja, no original, no que concerne ao relacionamento entre os dois personagens principais, que um venha ao resgate do outro em uma situação de perigo. Como já mencionamos, entre eles há uma sólida amizade, baseada em profundos laços de afeto, ainda que esses jamais cheguem a se manifestar de forma a macular a masculinidade estereotipada apresentada nas telas. No entanto, mesmo de forma relutante, Kirk acaba por compreender que cabe a ele ser o parceiro sexual que possibilitará o alívio da tensão que se acumula em Spock, pois não há mais ninguém e, mesmo que houvesse, a enorme empatia entre os dois faz com que essa seja a única alternativa para salvar a vida do amigo e parceiro. Então, ambos sucumbem ao dever e posteriormente ao prazer, o que vem a gerar desconforto e instabilidade na relação entre eles, uma vez tendo sido resgatados e voltado ao cotidiano da Enterprise. Acerca desse tipo de slash K/S, que utiliza Pon Farr como elemento catalisador da relação homoerótica para o shipper, o produtor de Star Trek, Gene Roddenberry, comentou, entre surpreso e sarcástico, que não gostaria de ser considerado “tão tolo a ponto de escolher um parceiro amoroso que entrasse em excitação sexual apenas uma vez a cada sete anos”. De qualquer forma, o diretor procurou manter uma postura politicamente correta, afirmando que, embora preferisse mulheres, não apresentava nenhuma forma de objeção moral “ao amor físico em quaisquer de suas muitas formas, terráqueas, alienígenas e mistas”, mantendo o tom irônico, mas não se opondo frontalmente aos slashers3. Corroborando a posição dos sites que aludem a Desert heat como sendo uma das fanfictions mais populares entre as primeiras do gênero a usarem abertamente o shipper K/S, o pesquisador norte-americano Henry Jenkins também escolheu o episódio para exemplificação de slash em seu primeiro trabalho sobre fanfictions, denominado Textual poachers, uma obra fundamental para a compreensão deste gênero e seus subgêneros. A história, porém, não se encontra postada na internet, o que comprova um traço de fetichismo característico de grande 3 I was never aware of thi lovers rumor, although I have been told that Spock encountered it several times. Apparently he had always sdismissed it with his characteristic lifting of his right eyebrow which usually some combination of surprise, disbelief, and/or annoyance. As for myself, although I have no moral or other objections to physical love in any of its many Earthly, alien, and mixed forms, I have always found my best gratification in that creature woman. Also, I would dislike being thought of as so foolish that I would select a love partner who came into sexual heat only once every seven years." ―Nunca estive ciente desses rumores de amantes, embora tenham me dito que Spock se deparara com isso várias vezes. Aparentemente, ele sempre os desconsiderou, com sua característica de levantar a sobrancelha direita, numa combinação de surpresa, descrença e/ou irritação. No que se refere a minha pessoa, embora eu não tenha nenhuma objeção moral ou de outra natureza ao amor físico em quaisquer de suas muitas formas, terráqueas, alienígenas ou mistas, sempre encontrei gratificação naquela criatura, a mulher. Ao mesmo tempo, eu não gostaria de ser considerado tão tolo a ponto de escolher um parceiro amoroso que entrasse em excitação sexual apenas uma vez a cada sete anos. (Tradução nossa). FANLORE, Fanlore Beta. Slash. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2009. 51 parte do fandom trekker, embora muito debatido: a história só pode ser comprada em fanzines, que ainda são vendidas pela internet, como itens de colecionador. Essa é uma característica de um fandom tradicional, como o de Star trek, que se encontra completamente ausente de um fandom contemporâneo de mesmo porte, no caso, Harry Potter. Toda a produção fanfiqueira potteriana foi realizada na internet, enquanto a trekker nasceu e se consolidou através das fanzines. Isso não significa que não existam fanzines de Harry Potter, mas a maior parte delas está online, num movimento que é natural para a geração que domina o fandom. De acordo com Jenkins, the Cosmic Fuck series apresenta um enredo simples, não rebuscado (na verdade, dentro daquilo que pode ser considerado a arquetípica trama K/S), com muitas das premisas básicas da ficção slash: o movimento do desejo masculino homossocial na direção de uma expressão direta da paixão homoerótica, a exploração de alternativas à masculinidade tradicional e a inserção da sexualidade em um contexto social mais amplo4 (Tradução nossa). Esse posicionamento de Jenkins foi um dos primeiros a esclarecer não apenas as premissas que compõem o slash, mas as motivações que o ocasionam. Contudo, desde Textual poachers mais de quinze anos se passaram, durante os quais a produção de slash ganhou proporções de fenômeno mundial, sendo que vários pesquisadores se debruçaram sobre o tema, adotando posicionamentos bastante controversos fundamentalmente no que diz respeito às motivações que levam sobretudo mulheres a escreverem e a lerem esse subgênero de fanfictions. Abordando a fan fiction em geral, que começou a ser escrita por mulheres e ainda hoje se encontra em território predominantemente feminino, Jenkins reconhece que, ainda assim, algumas mudanças são evidentes: Há uma década a fan fiction publicada era, em sua maioria, escrita por mulheres na faixa dos 20, 30 anos ou mais. Hoje, essas escritoras mais velhas estão acompanhadas por uma geração de novos colaboradores que descobriram a fan fiction navegando pela internet e decidiram ver o que eram capazes de produzir5. 4 The Cosmic Fuck series outlines within a simple, uncluttered plot (indeed, within what may be the archetypical K/S plot) many of the basic premisesof "slash" fiction: the movement from male homosexual desire to a direct expression of homoerotic passion, the exploration of alternatives to traditional masculinity, the insertion of sexuality into a larger social context. JENKINS, Henry. Textual Poachers. São Paulo: Aleph, 2008, p.186. 5 Idem, Cultura da convergência, p. 237. 52 É importante que atentemos para o fato de que nem todas as fanfictions denominadas slash exibem conteúdo sexual explícito. Inclusive, o sistema de classificação da Associação de Cinema dos Estados Unidos (Motion Picture Association of America) é utilizado – da mesma forma que em outros subgêneros de fan fiction – para indicar a presença e a explicitude de conteúdo sexual nas histórias. Enquanto a trama de algumas fanfics slash gira em torno da tensão sexual não resolvida, outras incluem temáticas mais sombrias, como o incesto, o estupro e rituais sadomasoquistas. Estas, de maneira geral, incomodam os detentores dos direitos autorais dos originais, e, em várias ocasiões, autores de fanfictions slash receberam ordens judiciais no sentido de interromper a postagem de suas histórias, prontamente retiradas do ar. Isso, no entanto, não significa que não haja muitas fics slash com esse tipo de conteúdo disponíveis na internet, mesmo no fanfiction.net, que, como já dito anteriormente, embora declare não admitir a postagem desse gênero, parece padecer da impossibilidade de checar tudo o que é depositado, repassando tal tarefa aos autores que utilizam o site. Muitos autores simplesmente utilizam a advertência “se não gosta deste tipo de história, não leia” para alertar seus possíveis leitores acerca do conteúdo, além, obviamente, de constarem a classificação em slash, Yaoi, ou Yuri. Não são raras, contudo, as histórias de incesto, por exemplo, em que tal temática não é anunciada de antemão, seja no disclaimer, seja na sinopse da história. Assim, o leitor de slash – principalmente o que lê em língua inglesa – sempre corre o risco de se defrontar com um conteúdo mais “pesado” do que aquele que originalmente buscava, pois há muitos tipos de fics slash, desde as mais românticas, até as consideradas mais ofensivas. Em seus primórdios, como demonstrado através dos originais de posse dos fãs nos EUA – sendo os mais notórios Star trek, Starsky and Hutch, Miami vice (também televisionado no Brasil sob o mesmo nome), Blake's 7, Man from UNCLE, Simon and Simon e The professionals –, o slash era escrito majoritariamente por mulheres, que narravam relações homoeróticas entre personagens masculinos, centrando a trama nos "obstáculos que eles deveriam vencer para chegar à intimidade, a recompensa que eles encontravam nos braços um do outro"6. Atualmente, o slash também representa relações homoeróticas entre mulheres, subgênero também chamado de femmeslash, e mesmo personagens canonicamente gays, como Jack e Will, do seriado televisivo Will and Grace, podem ser protagonistas de histórias postadas como slash, o que gera grandes controvérsias no fandom sobre a verdadeira natureza do subgênero. Tampouco só de mulheres heterossexuais é formado o conjunto de 6 [...] the obstacles they must overcome to achieve intimacy, the rewards they find in each other's arms. JENKINS, Textual Poachers, p. 189. 53 produtores e consumidores de slash, atualmente. Pelo que se pode depreender de visitas a fóruns nacionais e internacionais, em especial a esses últimos, há vários homens hetero e homossexuais, bem como lésbicas escrevendo, lendo e debatendo slash na internet, originando, inclusive, essa nova nomenclatura para o slash homossexual feminino – femmeslash. De maneira geral, entretanto, é difícil definir, através das histórias postadas, quem pertence a qual gênero e qual a sua orientação sexual na vida real, uma vez que os autores se apresentam através de nicknames ou pen-names (pseudônimos), e nem todos estão dispostos a revelar elementos de sua vida não virtual. Tal decisão dos autores parece natural, pois, se há a intenção de utilização da fan fiction slash para a expressão de fantasias sexuais transgressoras do conceito de normalidade ligado ao senso comum, é desejável que a identidade sexual do “transgressor” não irrompa em meio à “brincadeira”, pois isso pode não ser bem aceito nas relações, virtuais ou não. Naturalmente, os fãs também produzem teoria nos debates realizados em mailing lists de grupos ou fóruns destinados a esse fim. Na verdade, é com base na teorização que ocorre nesses debates, conjuntamente com a leitura das fanfictions propriamente ditas, que os estudiosos realizam suas observações e lançam hipóteses sobre a natureza do slash e a motivação por trás de sua produção e consumo. Jenkins, que sempre considerou os autores de fanfictions mais como “desenvolvedores” do texto original do que como seus reprodutores, segue com atenção os debates realizados em fandons de língua inglesa. Parece haver um número significativo de sites dedicados exclusivamente a fanfics slash em língua inglesa muito ativos em suas postagens tanto de histórias como de debates. Em português, entretanto, apesar do evidente interesse comprovado pelas postagens no fanfiction.net, não há muitos sites disponíveis apenas para a postagem e discussão de slash, mesmo no fandom potteriano. Assim, optamos por acompanhar a comunidade potteriana dedicada ao slash, em primeiro lugar, em virtude da extensão do fandom no Brasil, sem, no entanto, tencionar apresentar um estudo etnográfico sobre a mesma, pois não é este o foco principal desta pesquisa. Em segundo lugar, a escolha recai sobre a magnitude da transgressão que implica reler, no sentido de reescrever, uma obra tão bem sucedida no mundo inteiro, classificada como infanto-juvenil, com o propósito de criar relações eróticas de natureza homossexual entre alunos, em sua maioria, menores de idade, entre professores e mesmo entre alunos e professores da mitológica Hogwarts. A natureza dessa transgressão que se passa num universo escolar – o que não é um mero detalhe – contribui, a nosso ver, para aumentar a excitação provocada pelo proibido. É certo que a descoberta e exploração da sexualidade na adolescência é um tema altamente erótico, mas muitas vezes as fanfics slash potterianas são 54 classificadas como imorais por ultrapassarem valores fundantes da nossa sociedade, como o tabu do incesto, inclusive. O debate sobre quais são os limites da fantasia sexual e onde ela incide sobre a liberdade e os direitos de todos não cabem nesta pesquisa, entretanto, gostaríamos de ressaltar que se tratam de fantasias e é importante traçar a diferença entre fantasia e realidade justamente para não incorrer na supressão de liberdades individuais. 2.1 UMA PITADA DE JEITINHO E UM BOCADO DE MAGIA: ALGUNS EXEMPLOS DE SLASH NO BRASIL Com exceção da Floreios e Borrões, que guarda um acervo razoável de fics slash, a fanfic slash potteriana brasileira parece estar espalhada numa infinidade de blogs, pequenos sites dedicados a uma única fic e mailing lists, como as criadas no Yahoo Groups, sem contar as postadas no fanfiction.net. O primeiro colocado na busca através do Google é um bom exemplo desse tipo de publicação online de iniciativa individual, fora dos grandes sites. Tratase de uma lista de fanfics da autora Magalud – que também publica no fanfiction.net –, com 42 histórias postadas7, na sua maioria curtas, com fanart detalhada. A página de abertura de Magalud, que denomina sua fanfics de “Snapecêntricas”, traz um bom exemplo do senso de humor típico dos fanfiqueiros, especialmente dos que escrevem slash, habituados que são a mexer em temas tabu e a desempenharem o papel de iconoclastas. O trecho a seguir é um aviso habitual, que visa a evitar conflitos com o internauta incauto, que pode vir a postar “flames” – comentários agressivos – contra a autora em virtude do conteúdo do material: Uma vez que você clicar nos links abaixo, você está concordando com o que vai ler. Todas as histórias possuem um cabeçalho detalhado com os alertas mais explícitos. Sendo clara: não adianta reclamar de que não gostou do que leu. Você foi avisado. Já aviso que meu dragão de estimação adora flames. Não é sua praia? Sem problema. A porta de saída fica aqui8. Caso decida não ler as fics, ao clicar na “porta de saída” o visitante é automaticamente redirecionado ao site do Opus Dei, organização católica de caráter estritamente conservador, 7 GEOCITES. Fanfic. Disponível em: . Acesso em 02 out. 2009. 8 MAGALUD. Beloved Git. Disponível em: . Acesso em 07 out. 2009. 55 muito conhecida em virtude do livro O código Da Vinci, de Dan Brown, que tem como um dos seus personagens um monge assassino, membro daquela organização, a qual está envolvida em complôs misteriosos. Dada a extrema oposição entre os princípios que regem a Opus Dei e os que regem a confecção das fanfictions slash, a ironia da autora é ferina. A autora tem fics premiadas em desafios ou fests, como são chamados os festivais de fanfictions organizados pelos membros do fandom. Para fins de exemplificação, escolhemos a fic Desiderata, com 11 capítulos, a qual é classificada pela própria autora como pertencente aos gêneros Romance, Drama e Angst. Ela amplia a história para um tempo praticamente não narrado pela autora do original, J.K. Rowling – o pós-guerra. Trata-se de uma fanfic betada, ou seja, revisada, e a autora agradece a sua beta-reader, uma vez que a trama por ela desenvolvida parece contrariar suas preferências. Embora o disclaimer9 seja o usual, reconhecendo a propriedade e os direitos autorais da série Harry Potter, há um personagem de autoria da própria Magalud, sendo que ela inclusive sugere um ator para interpretá-lo, como se a história pudesse vir a ser transformada em filme. Não é incomum que atores e cantores muito presentes no universo pop participem de fanfictions ou sirvam de fonte de inspiração para seus autores, pois o leitor constrói seu imaginário com informações que vêm de diferentes mídias, que tornam-se, propositadamente ou não, diferentes portas de acesso à narrativa. No caso de Harry Potter, por exemplo, a mistura entre personagens do livro e seus atores no cinema é muito grande. Por isso, poucos são os autores de fics que preferem desconsiderar os filmes completamente, quando da criação de seus trabalhos. Um caso de absoluto sucesso de “colagem” entre personagem do livro/filme e o ator que o interpreta é o do professor de Hogwarts, Severus Snape, interpretado 9 Título: Desiderata Autor: Magalud Categoria: Slash Gênero: Romance, drama, angst Classificação: NC-17 Personagens: Severus Snape, Remus Lupin, Harry Potter, Draco Malfoy Resumo: Amores e desamores quando nossos heróis tentam reorganizar sua vida no pós-guerra. Spoilers/Timeline: Pós-guerra, menciona Half-Blood Prince. Disclaimer: O mundo de Harry Potter, seus personagens e paisagens são de propriedade de J.K. Rowling, Warner Bros., suas editoras e afiliadas. Nenhum lucro foi auferido pela criação dessa história, nem qualquer tipo de má-fé intencionada de qualquer maneira contra a autora ou os atores e atrizes que tão maravilhosamente deram vida a esses intrigantes personagens. Mas o Derrick é meu! E eu escolho Aaron Himelstein para interpretá-lo. Aviso: Produzida para o Desafio de Fevereiro da lj-comm fanfic_br.livejournal.com Alerta: OOC-ness para um dos personagens principais. Data: 07/03/2006 Palavras: 16.500 – Muito mais do que eu previa.  Agradecimentos: À Ivi, por inspirar o título. E mais ainda, por aceitar em betar, por mais que eu tenha ferido seu amor. MAGALUD, Beloved Git, 2009. 56 no cinema por Alan Rickman. Após a estreia de Rickman como o mestre da disciplina de Poções no primeiro filme da série, o misterioso, frio e mal-humorado (e seboso, nos livros) Severus Snape se tornou um dos personagens mais sensuais para o fandom potteriano, sendo que as fanfics de conteúdo sexualmente explícito, slash ou het (heterossexuais) tendo esse personagem como protagonista se multiplicaram na internet, bem como os grupos dedicados a sua adoração. O spoiler, termo que se refere a elementos de uma obra ficcional que possam ser revelados através do post, da fic em questão é do volume Half blood prince, publicado no Brasil sob o título O enigma do príncipe, sexto livro da série. O verbo “spoil” pode ser traduzido para o português como “estragar”, e o aviso dos autores para seus leitores tem precisamente a intenção de não prejudicar o prazer proporcionado pela narrativa original para aqueles que ainda não a leram. Magalud postou outro importante aviso aos fãs leitores de sua história: o de que um dos personagens será apresentado out of character (OOC), o que significa que ele não agirá em conformidade com o que se esperaria dele no cânone, um artifício ao qual muitos autores recorrem para possibilitar o “funcionamento” da trama que imaginaram. Há muito debate entre os mais ciosos da qualidade da fanfiction publicada no que se refere ao uso excessivo de personagens OOC, por ser uma forma simples de driblar o cânone. No Brasil, contudo, parece-nos que o prazer da brincadeira com os personagens se sobrepõe à discussão do valor literário, ou melhor, da fidelidade ao cânone. O personagem OOC, em Desiderata, é Lupin, o sempre ético professor lobisomem que, nesta fic, é infiel ao seu amante, Snape. Lupin o trai com ninguém menos do que Draco Malfoy, despedaçando o coração de Severus e ocasionando o fim do relacionamento entre os dois, o que abre uma brecha para que o solitário Potter, alquebrado ainda – mesmo após seis anos passados desde o fim da guerra contra o mal – possa revelar o verdadeiro amor que nutre pelo seu antigo mestre de Poções. Em virtude de a história se passar muitos anos depois da guerra, não há menores de idade envolvidos na trama, o que não significa que a idade seja um empecilho para a criação de fanfictions slash no fandom potteriano das mais variadas tonalidades. Naturalmente, é compreensível a utilização do recurso OOC, uma vez que essa fic foi escrita precisamente para um concurso chamado Desafio da infidelidade. Como todos os principais heróis da série de J. K. Rowling procuram ser éticos e justos, e acreditando que naturalmente tal escritora desejasse escrever sobre seus personagens favoritos, alguém teria de agir de forma diferente do esperado para que a fanfic pudesse se encaixar no referido desafio. Como prêmio pelo segundo lugar, a autora ganhou o seguinte banner para postar em sua fic: 57 Ilustração 2 – Desafio da Infidelidade Fonte: GEOCITES, Fanfic, 2009. Seria perfeitamente lógico para alguém de fora desse universo argumentar que todos os personagens tomados de empréstimo para a escrita da fic em questão estão OOC, uma vez que não há nenhuma menção no original de que Snape e Lupin pudessem eventualmente tornar-se amantes, tampouco Draco Malfoy, e, certamente, muito menos Harry Potter. Mas os fãs leem subtextos. Ou os inventam, a seu bel-prazer, para a satisfação de suas fantasias. J. K. Rowling se declarou indignada com as fics slash, diferentemente do relacionamento sempre incentivador que manteve com todo o fandom potteriano, chegando mesmo a atribuir prêmios a sites que ela visitou e considerou prestarem um ótimo trabalho, como foi o caso do brasileiro Potterish. No entanto, mesmo que concordemos com a suposição de que não há subtextos homoeróticos a serem desenvolvidos na série Harry Potter, é forçoso compreender que quando Rowling afirmou, após o lançamento do sétimo e último livro, que Dumbledore era, de fato, gay, o número de fanfictions slash com esse personagem aumentou vertiginosamente. Na verdade, acreditamos que uma autora acostumada a escrever e a ler slash vai, inevitavelmente, vislumbrar mais subtextos dessa natureza do que qualquer outro autor de fanfics. Trata-se de uma reação natural para uma mente já treinada para perceber possíveis lacunas em relacionamentos masculinos nos quais se sustenta uma certa tensão não resolvida, que poderia facilmente, na visão de uma autora slash, converter-se em resolução sexual. Um caso excepcional neste universo de fics slash “pulverizadas” no Brasil é o Boa Constrictor10, da autora Ptyx. O pen-name da autora sugere uma mulher culta e, pela extensão e estruturação do site, sem dúvida criativa e muito versada no fandom. A esse respeito, a autora postou a seguinte explicação: 10 PTYX. Ptyx noi gandres. Disponível em: . Acesso em 04 nov. 2009. 58 Ptyx é um hapax, criado pelo poeta simbolista francês Stéphanne Mallarmé para o seu famoso "Soneto em X" - ele precisava de uma rima para "Phénix", "Styx" e "onyx". Ptyx é uma não-palavra, mas evoca o termo grego para "dobra" ou "concha". Mesmo que não possua um significado preciso, a palavra inventada ptyx cumpre o papel que dela se espera: representa um objeto misterioso que nunca existiu, que agora desapareceu, mas que possui uma ressonância individual como o próprio poema11. O nome do site, que tem uma cobra como símbolo, também alude à sedução e ao poder, pois a boa constrictor, uma das maiores cobras do mundo, mata suas presas através do chamado “abraço de cobra”, ou seja, enrolando-se nelas e as esmagando, para depois deglutilas. Ao penetrar em um site de fanfic slash com esse nome e essa simbologia, o internauta pode ter uma noção de onde está se aventurando. De maneira geral, os sites internacionais de slash potteriano apresentam uma estética “dark‖, um visual sombrio, lúgubre, ao mesmo tempo que sensual, e parecem convidar o leitor a entrar em um mundo de mistério, sensualidade e perigo. O Restricted Section, por exemplo, abre com uma fanart12 de Harry Potter na qual Severus Snape parece dominar a cena. A seus pés, encontra-se Hermione, sentada no chão, meias escolares abaixadas, saia de uniforme deslizada, deixando pernas coxas à mostra. No canto à esquerda, duas outras alunas (possivelmente, Ginny e Pansy) de uniforme escolar e pernas também à mostra parecem formar um casal. No canto à direita, os arquiinimigos Harry Potter e Draco Malfoy, envergando suas capas escolares, posam de costas um para o outro. Todos os gêneros e orientações sexuais parecem contemplados nessa arte. Livros e óculos em primeiro plano parecem indicar que aqui a leitura e a escrita vêm em primeiro lugar. Todos os personagens olham de frente para você e o aviso oferece, inclusive, links para outros sites possivelmente mais adequados ao internauta: 11 PTYX, Ptyx noi gandres, 2009. 12 RESTRICTED SECTION, Restricted section.com, 2009. 59 Ilustração 3 - Restricted Section.org Fonte: RESTRICTED SECTION, Restricted section.com, 2009. Alô e bem-vindo ao Restricted Section. Em virtude da decisão do fanfiction.net de remover todo o conteúdo NC-17, um grupo de autores de fanfictions de Harry Potter decidiu abrir um novo arquivo devotado às fics de Potter adultas. Isso significa que este site é estritamente para pessoas com mais de 18 anos de idade. Se você é menor de idade, talvez o Leaky Cauldron ou o FictionAlley sejam mais do seu agrado. SE VOCÊ É MENOR DE IDADE OU NÃO DESEJA LER AS HISTÓRIAS DESTE ARQUIVO, POR FAVOR, SAIA CLICANDO AQUI13. Para ler as histórias, é necessário que o leitor se filie ao site. Uma vez escolhida uma fanfic por autor ou por título, ao tentar acessá-la ele se deparará com uma nova página, advertindo-o sobre as restrições legais acerca do acesso ao conteúdo daquela fanfic por parte de menores de idade. “Se você não tem CERTEZA de quais são as leis na sua área, NÃO ACESSE a seguinte história até que você tenha certeza de que não vai estar violando as leis locais”, insiste o site, apresentando um botão para que o leitor saia, logo abaixo da frase “Eu não creio que possua permissão legal para acessar a seguinte história, ou não desejo fazê-lo”. Caso decida clicar no botão de entrada, a confirmação de sua responsabilidade está assim redigida: “Eu asseguro que tenho acima de dezoito anos e que o acesso à seguinte história não violará as leis do meu país ou normas locais”. A estética e o tom sombrios dessa página 13 Hello, and welcome to the Restricted Section. In the wake of fanfiction.net's decision to remove all NC-17 content, a group of Harry Potter fanfiction authors decided to open a new archive devoted to adult Potterfic. This means that this site is strictly for people over the age of 18. If you are underage, perhaps the The Leaky Cauldron or FictionAlley would be more to your liking. IF YOU ARE UNDERAGE, OR DO NOT WISH TO READ THE STORIES IN THIS ARCHIVE, PLEASE LEAVE BY CLICKING HERE. RESTRICTED SECTION, Restricted section.com, 2009. 60 podem afastar o leitor mais ingênuo. Porém, dada a natureza curiosa do ser humano, acreditamos que ela também seduz precisamente pela proibição que tanto anuncia. De qualquer forma, no que se refere aos webmasters e a sua responsabilidade pelo conteúdo publicado, aparentemente todas as precauções foram tomadas. A imagem do último impedimento antes de o leitor entrar em contato – já com certa ansiedade, talvez – com a fan fiction potteriana erótica de sua escolha fala por si só: . Ilustração 4 - “Aviso” Fonte: RESTRICTED SECTION, Restricted section.com, 2009. No caso do nacional Boa Constrictor, o acesso não é tão complicado. Há apenas um aviso e, logo abaixo dele, estão listadas as fics, que pertencem quase que exclusivamente ao shipper Snape/Harry. Na abertura do site, em inglês, no entanto, é preciso que o leitor concorde com o seguinte aviso – cuja versão está em inglês, naturalmente – para ter acesso ao site: 61 Estas histórias incluem temas de conteúdo adulto, inadequados para menores ou para pessoas que tenham alguma objeção em relação a esse tipo de conteúdo. Ao entrar nessas histórias, você se declara consciente desse fato e exime os provedores, donos e criadores do site de qualquer responsabilidade14. Consciente das implicações legais de seu hobby, a autora também anuncia o bordão de que “todos os personagens do universo de Harry Potter são propriedade de J.K. Rowling. A autora destas fanfictions não obtém nenhum lucro com elas.” Para melhor informar o leitor acerca de como realiza sua releitura do cânone, ela adota um procedimento incomum dentre as autoras brasileiras: a manutenção de vocábulos e nomes tais como apareceram no original, em inglês: Para facilitar a leitura para os fãs brasileiros de Harry Potter, emprestei muitos termos da tradução de Lia Wyler. No entanto, como encaro a tradução de Lia como dirigida principalmente às crianças, e como as minhas histórias NÃO são para crianças, muitas vezes preferi manter os termos no original (sobretudo os nomes próprios) ou dar uma outra tradução a eles. Nenhuma história ou parte de história deve ser reproduzida ou distribuída sem autorização escrita15. Há um convite para participar de um grupo de slash, no Yahoo Groups, como forma de acompanhar a postagem de novos capítulos e, possivelmente, de interagir com outros leitores de slash. Nós aceitamos esse convite e percebemos como o próprio Yahoo trata com seriedade a possível e indesejável participação de menores de idade ou de pessoas desavisadas em grupos cujo conteúdo é considerado apropriado apenas para adultos. Em primeiro lugar, o link postado no Boa Constrictor leva o leitor para uma página do Yahoo que o cientifica de que ele está prestes a entrar em uma área destinada apenas a adultos. Para entrar, criamos uma conta em nosso nome no Yahoo, que, na sequência, apresentou o seguinte aviso: 14 PTYX, Ptyx nois grandes, 2009. 15 Ibidem, 2009. 62 Você está numa área com Restrições de Idade no Yahoo! Groups. Esta área contém materiais de uma natureza mais madura e adulta que pode não ser adequada para usuários mais jovens. Você tem que ter mais de 18 anos de idade para acessar esta área do Yahoo! Groups. Ao clicar o botão “Eu aceito”, abaixo, você estará atestando que tem, no mínimo, 18 anos de idade. Se você tem menos de 18 anos ou não deseja continuar, selecione o botão “Eu não aceito” abaixo e você será enviado de volta a homepage do Yahoo! Groups. Para saber mais sobre como proteger as crianças online, por favor, visite nossos Recursos para Pais (com link)16. Uma vez tendo escolhido “Eu aceito”, passamos a participar de uma comunidade na qual a autora posta avisos enviados por e-mail sobre atualizações nas histórias, novas versões de suas fics para outras línguas, até mesmo húngaro, e propaganda e solicitações de votos para um livro escrito por ela, fora do fandom. O livro se chama Recortes, ou Clippings, na versão escrita em língua inglesa, e o banner postado no Boa Constrictor o classifica como um romance gay. Para essa aventura autoral, a escritora adotou o pen-name de A. J. Mirag, sendo que o romance pode ser comprado tanto no formato códex, como em download, em um site que convida a comprar “livros proibidos” e anuncia ser a favor da liberdade literária17. Na verdade, trata-se de um site onde os autores podem publicar seus próprios livros sem recorrer a uma editora, imprimindo-os sob demanda ou disponibilizando-os para download pago. Dentre os livros proibidos, encontram-se obras consideradas clássicas da literatura, como Alice‟s adventures in wonderland (Alice no país das maravilhas), atualmente de domínio público, mas cuja reimpressão está sendo vendida no site com o objetivo de angariar fundos para a American Library Association. Acompanha a obra uma explicação do porquê ela foi, em tempos passados, proibida. 16 You've reached an Age-Restricted Area of Yahoo! Groups This area contains material of a mature and adult nature that may not be suitable for younger users. You must be over the age of 18 to access this area of Yahoo! Groups. By clicking the "I Accept" button below, you certify that you are at least 18 years of age. If you are under the age of 18 or do not wish to continue, select "I Don't Accept" below and you will be returned to the Yahoo! Groups home page. To learn more about protecting children online, please see our Resources for Parents. Copyright © 2009 Yahoo! Inc. All rights reserved. 17 LULU MARKETPLACE. Compre livros proibidos. Disponível em: . Acesso em: 2 out. 2009. 63 Voltando ao Boa Constrictor em português, as fanfics estão agrupadas por shippers, sendo o primeiro Snape/Ginny/Harry, que forma a série Tempero, com 19 histórias curtas sobre o relacionamento entre os personagens já na vida adulta, incluindo um inevitável ménage a trois. O segundo shipper, responsável pela maioria absoluta de fics, inclui 29 histórias e duas séries – Gótica e Mandala, além de 6 ficlets (pequenas fics em que toda a história se passa em um único capítulo) com Snape/Harry. As séries Gótica e Mandala, atestando o potencial criador da autora, possuem, respectivamente, dez e seis fics. Assim, no site, apenas o shipper Snape/Harry inspirou 49 histórias eróticas. O terceiro e último shipper é o improvável (mas, aos olhos de alguém de fora do fandom, não o seriam todos?) Snape/Lucius, gerador de uma única fanfic em que esses personagens se reencontram depois da guerra, presos em Askaban. Há, ainda, várias flashfics, que equivalem a contos, e drabbles, que equivalem aos microcontos, geralmente fics de 100 ou 200 palavras, muito solicitadas em desafios dentro do fandom. Há muito debate nos fandons acerca da nomenclatura adequada quanto à extensão das fics. Por isso, decidimos entrar em contato diretamente com a autora, que informou, por email, seguir a convenção estabelecida no Fanfic Symposium18, no qual há um artigo sobre a nomenclatura adequada considerando o número de palavras de uma fic – When size matters (Quando o tamanho importa). No entanto, a autora alertou para o fato de que no processo de construção do site é possível que algumas fanfics tenham sido postadas sob classificações inadequadas, tendo nos apresentado as razões para tanto: Flashfic é um termo, digamos, técnico, preciso, significando uma fic com menos de 500 palavras mas que não tenha exatamente 100 palavras. O nome para uma fic de exatamente 100 palavras é drabble, embora hoje em dia muita gente ignore isso e chame qualquer fic curta de "drabble". (Os puristas ficam chocados com essa confusão.) Já "ficlet" não é bem um termo "técnico", mas também é usado no fandom para significar uma fic curta. Faz tempo que eu li o artigo que estou linkando acima, mas acho que atribuo o termo "ficlet" a fics com mais ou menos 1000 palavras. Pode haver imprecisões, porque quando eu comecei o site, eu não tinha uma seção para flashfics, eu colocava tudo junto. Depois não quis mudar a localização, porque os links das outras pessoas ficariam incorretos! Então os flashfics antigos ficaram junto com as fics, levando a uma certa imprecisão. Leia o artigo, se é que você já não leu. É muito bom, e todos deveriam ler. Pena que não tem tradução para o português19. 18 TRICKSTER. The Fanfic Symposium. Disponível em: . Acesso em: 02 nov. 2009. 19 P. Qual é a diferença? [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 8 de outubro de 2009. 64 Ao que parece, a constante interação entre os membros do fandom faz com que a linguagem utilizada por eles esteja em permanente transformação. Já a ampliação de um site como o Boa Constrictor leva inevitavelmente à criação de espaços para novos projetos, sem que se tenha, necessariamente, de apagar os anteriores. O mesmo site existe em inglês, no qual se torna evidente o quanto a autora se sente à vontade com a língua inglesa: nele estão suas fics, bem como um guia para os leitores encontrarem o que desejam ler. Há, ainda, poesias de conteúdo adulto e fics vertidas para outras línguas que não a inglesa: uma em alemão, três em espanhol, quatro em francês, duas em húngaro e cinco em russo. Muitas foram traduzidas por fãs que entraram em contato com o site em língua inglesa e se sentiram compelidos a partilhar o que leram com outros fãs em sua língua nativa. Portanto, a autora tem um público leitor que ultrapassa a barreira da língua portuguesa. Dentre as fanfictions em outras línguas que não o português e o inglês, uma fanfic em francês e uma em alemão foram escritas pela própria Ptyx, o que também é um indicativo do nível cultural da autora, acima da média. As fanfictions em língua inglesa não são versões das disponíveis em língua portuguesa, mas as mesmas histórias escritas diretamente em inglês, sem as imperfeições que versões disponíveis na internet costumam apresentar, em virtude do uso massivo de tradutores eletrônicos. Em um exemplo incomum, que atesta a produtividade e a imaginação da autora, ela insere, ousadamente, os personagens do universo potteriano em terras brasileiras, e a magia do folclore nacional oferece um sutil crossover entre culturas como pano de fundo para o casal Snape e Harry. Trata-se de Muiraquitã, uma continuação de Nhandu – fic na qual Harry se encontra sob os cuidados de Snape, num sítio localizado no litoral de São Paulo, para sua proteção. A autora parece se divertir em apresentar ao leitor estrangeiro não apenas personagens folclóricos brasileiros, mas também questões como os entraves burocráticos da máquina governamental. O trecho a seguir exemplifica como se instala o crossover entre culturas, logo no início da história: 65 Certo dia, caminhando pela praia de Andirá, Harry e Severus encontraram uma loja de ervas, amuletos e poções. Severus puxou Harry lá para dentro, e Harry se viu cercado dos objetos mais estranhos: velas coloridas, colares, búzios, atabaques, figas, cachimbos, maracás... Severus foi direto para a seção de ervas e poções. Uma velha índia se aproximou para falar com ele, e Severus perguntou algo a respeito de uma poção. A índia, a princípio, se mostrou reticente e arredia, mas Severus, com seus métodos Sytherin, questionou a eficácia da poção, e a velha, sem perceber que estava caindo na cilada, começou a explicar por que, obviamente, a poção funcionava. Logo, Severus e a índia, que se chamava Jurema, estavam conversando como velhos amigos, apesar do português de Severus ser ainda muito deficiente. Harry, que estava apenas começando a aprender a língua, entendia muito pouco do que eles diziam - captava, apenas, o sentido geral. A índia chamava Harry de "menino dos olhos de muiraquitã". Severus lhe perguntou por que o chamava assim, e Jurema explicou que o muiraquitã é um amuleto feito de pedra verde, e que dá muita sorte a quem o possui20. Ao ver seus negócios com a índia (a venda de poções) prosperarem, Snape e Harry decidem montar uma pequena empresa, cujos percalços a autora divertidamente soluciona através de magia: Seus amigos brasileiros lhes disseram que era impossível uma empresa pequena pagar impostos no Brasil e sobreviver, e ensinaram-lhe algumas técnicas básicas do famoso "jeitinho brasileiro". Usando de "jeitinho", mais um pouco de hackerismo mágico e um ou outro Feitiço do Esquecimento, Severus conseguiu resolver os problemas burocráticos21. Ptyx tem o cuidado de adornar esta fic com imagens de seres mitológicos brasileiros, como a mula-sem-cabeça e o saci-pererê, cujas origens e habilidades são explicadas ao leitor à medida que aparecem na história: 20 Observemos o mesmo trecho em inglês, revelando uma escrita fluente e o uso de expressões idiomáticas como “spill the beans”: One day, while walking on the Andirá* beach, Harry and Severus found a shop selling herbs, amulets and potions. Severus pulled Harry inside, and Harry found himself surrounded by the weirdest things: colourful candles, necklaces, búzios* shells, conga drums, fist charms, pipes, maracas... Severus walked straight to the herbs and potions stand. An old Indian woman approached him, and Severus asked something about a potion. The Indian woman seemed reserved and elusive at first, but Severus, with his Slytherin ways, questioned the potion's efficacy and the old woman inadvertently started to spill the beans, trying to prove him that the potion worked. Soon, Severus and the Indian, whose name was Jurema, were talking like old friends, in spite of Severus's deficient Portuguese. Harry, who was barely starting to learn the language, could only grasp the general meaning of what they were saying. The Indian called Harry "the boy with muiraquitã* eyes". Severus asked her why she had called him that; Jurema said the muiraquitã was an amulet made of green mud or stone, and that it gave luck to those who possessed it. PTYX. Muiraquitã. Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2009. 21 Ibidem, 2009. 66 Ilustração 5 - Mula-sem-cabeça e saci-pererê Fonte: PTYX, Muiraquitã, 2009. Deliberadamente, procurando oferecer ao leitor estrangeiro uma experiência mais próxima da cultura brasileira, em Nhandu, a autora apresenta, ao final de cada capítulo, links relacionados a iguarias da culinária brasileira experimentadas pelos personagens principais, como a sobremesa manjar branco. Em Muiraquitã, uma fanfic mais curta, que consiste em uma continuação de Nhandu, há, ao final, um glossário em inglês elaborado pela própria autora, com todas as informações necessárias para o leitor compreender o significado de termos indígenas e de neologismos como “jeitinho brasileiro”22. Contudo, sendo a fan fiction pertencente ao subgênero slash, o clímax da história se dá quando a tensão entre os personagens – sempre presente, no original – se resolve de forma sexual. Nessa história, um clichê do gênero – a proximidade inevitável entre dois personagens que, canonicamente, parecem se odiar, mas que se encontram em uma situação que os distancia de seu universo de origem (Hogwarts, no caso) – é usado para promover a relutante aproximação entre os dois. Para as cenas de sexo, Ptyx utiliza uma pitada de romance, mas também um vocabulário claro, sem ser chulo e sem se furtar a dar detalhes de como ocorre a relação sexual propriamente dita, o que se percebe no trecho que transcrevemos a seguir: 22 Glossary: Aguapé - Eichornia crassipes, the most common aquatic plant in Brazil. Andirá - fictitious name of a beach/city; it means "bat" in Tupi. Búzios - the ancient divination art involving the throwing and interpretation of the cowry shells. Ipuã - fictitious name of an island; it means "island" in Tupi (ha ha). Jaborandi - Pilocarpus jaborandi, a shrubby tree with smooth grey bark, large leathery leaves and thick, small, reddish-purple flowers. The leaves contain an essential oil which gives off an aromatic balsam smell when they are crushed. It has many cosmetic and medicinal uses. The word jaborandi comes from the Tupi and it means "what causes slobbering" describing its ancient medicinal use. Japecanga - Smilax japecanga, a medicinal plant. Jeitinho - as defined in the story, it's a Brazilian concept meaning that you can get around anything, especially if it involves cheating the bureaucracy, if you are creative enough. Manacá - fictitious name of a beach; a plant from which the Indians extract a poisonous juice with which they smear the tips of their arrows. Muiraquitã - A green amulet, made by the Icamiabas, a tribe of women warriors. You can read about the Muiraquitã legend here. 67 A respiração de Harry acelerou, suas costas se arquearam um pouco, os quadris se impeliram para a frente, o pênis ereto pressionou-se contra a barriga de Severus. - Quero possuir você - murmurou Severus, em voz rouca de desejo. - Eu pensei que você não gostava de ficar por cima. - Você é virgem. Eu não queria machucá-lo. - E agora você quer? - perguntou Harry, intrigado, embora continuasse se esfregando contra Severus. - Quer me machucar? Me punir porque eu o deixei aqui sozinho? - Eu quero me vingar, sim, mas não por meio da dor. Quero fazer amor com você. Quero deixar você louco, fazê-lo gritar de prazer. - Oh, Deus - gemeu Harry, louco de tesão. Severus virou Harry de barriga para baixo e mordiscou-lhe o pescoço, descendo depois pelo sulco entre as costelas, acompanhando a espinha. Harry se contorcia sob ele. Quando aqueles lábios aveludados chegaram à junção das nádegas, Severus parou por um instante. Harry protestou. Severus agarrou-lhe os quadris, ergueu-os e separou-lhe as pernas23. Outro exemplo de âmbito nacional, desta vez de um website dedicado a uma única fic, é o Red Light District. O site foi divulgado por suas autoras, C e A, no Potter Slash Fics, um grupo do Yahoo! Groups com mais de cinco anos de idade, atualmente contando com 360 associados que recebem as mensagens de qualquer membro diretamente em seus e-mails. As autoras classificam essa fic como “next-gen” (next generation), o que significa que os personagens principais pertencem à geração posterior àquela de Harry Potter e de seus amigos. Pode-se dizer que J. K. Rowling “deu a dica” de como dar continuidade ao mundo potteriano, no momento em que ofereceu novos personagens no livro que encerra a série – Harry Potter e as relíquias da morte. No epílogo, Harry leva os filhos à mítica Plataforma Nove e Três Quartos, para que eles embarquem no trem que os levará a Hogwarts. Nesse pequeno capítulo, o leitor fica sabendo que Ron e Hermione se casaram e também têm filhos, bem como qual foi o destino de vários outros personagens. Essa introdução à geração seguinte foi como um abrir de portas para os fãs, que, a partir de então, passaram a saber com quais personagens desenvolver suas histórias. No caso de Red Light District, os personagens centrais são os filhos de Harry Potter, James Sirius (Tiago Sirius) e Albus Severus, bem como o filho de Draco Malfoy, Scorpius, agora bons amigos. O prólogo da história abre com uma cena muito sensual entre James e Scorpius, que logo se transforma num ménage à trois pela chegada de Fred Weasley – filho de George, um dos gêmeos da geração à qual pertence Harry Potter – testemunhada por Albus, no quarto que divide com Scorpius, em Hogwarts. Albus se retira do quarto protestando sentir-se enojado pela cena que testemunhou, enquanto internamente se debate entre a repulsa e o desejo que o perturbam. O leitor, possivelmente também perturbado, é 23 PTYX, Muiraquitã, 2009. 68 levado, nos capítulos seguintes, a compreender como se chegou a esse ménage. Na fic, há vários elementos polêmicos, como o sexo praticado na escola, envolvendo menores de idade, e a prostituição, além, é claro, da homossexualidade em si. O site era muito bem estruturado, inclusive com fichas para cada personagem, linha de tempo para a compreensão do contexto no qual se passa a história e um layout sensual, com cortinas vermelhas aveludadas e fanarts provocantes, logo na abertura do site. No entanto, um problema com o servidor que o hospedava o retirou do ar inadvertidamente, deixando as autoras e os leitores – inclusive nós – sem saber como prosseguir a leitura. Perguntadas, através do Potter Slash Fics, sobre o paradeiro de seu site, uma das autoras enviou a seguinte explicação, por e-mail: *A*** mais morta do que viva* Sim, é isso aí mesmo que a R*** contou: o Server do meu host (atbhost.net) fechou repentinamente e todos os dados, (sic) sem exceção foram perdidos. Por sorte, eu e a C*** mantemos as fics e todos os dados (leia-se capítulos, fichas de chars, timeline etc) referentes a ela no Google Docs. Mas todo o trabalho de site mesmo, foi perdido. Eu já arrumei um outro host, mas ainda vai levar um tempo até tudo estar online novamente. Tão logo conseguirmos isso, eu aviso. Mas o projeto continua mais do que de pé!24. A instabilidade na internet e a dificuldade de manter um site volumoso em número de arquivos são problemas constantemente enfrentados pelos autores e pelos leitores de fanfiction, que, por isso, preferem confiar em um site como o fanfiction.net para suas postagens, mesmo correndo o risco de serem denunciados e terem a conta sumariamente deletada. As autoras do Potter Slash Fics lembram da época em que o fanfiction.net decidiu pela proibição das fics não apenas do subgênero slash, mas de todas as que continham conteúdo sexualmente explícito (NC-17, de acordo com a classificação tomada de empréstimo da American Motion Association). P se manifestou a esse respeito: 24 A. Red light district – fic next gen. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 14 de outubro de 2009. 69 Bem, Malu, esse foi um drama internacional. Depois que a ff.net proibiu os NC-17 (eles fizeram isso por causa de uma carta de Cease & Desist dos advogados da J. K. Rowling), vários arquivos foram criados. Entre os mais antigos estão a Restricted Section, o Ink Stained Fingers, a AdultFanfiction.net, o Noire Sensus (Gramarye), o Skyehawke e outros que já fecharam. Não sei se o fosff está entre esses mais antigos; possivelmente está. Depois, quando a Skyehawke mudou as regras, instaurando uma espécie de comitê para julgar fics que fossem denunciadas, houve uma nova leva de criação de arquivos mais "liberais": O The Archive at the End of the Universe, por exemplo, que, como o fosff, é multifandom e aceita fics em outras línguas25. As ordens judiciais, chamadas Cease & Desist, são comuns em casos de slash e, na verdade, foram utilizadas quase que indiscriminadamente pelos advogados da Warner contra sites de fan fiction em geral. Esses episódios e a luta dos fãs para manterem seus sites funcionando fazem parte das chamadas Guerras de Potter, registradas por Henry Jenkins em Cultura da convergência. Heather Lawver, a webmistress do Daily Prophet, ajudou a organizar a resistência dos webmasters à ofensiva da Warner através de um movimento que foi batizado de Defense Against the Dark Arts (Defesa Contra a Arte das Trevas, uma polêmica e fundamental disciplina lecionada em Hogwarts) e chegou até mesmo a participar de um debate televisionado pelo canal MSNBC, com um porta-voz da Warner Bros. Jenkins compreende que as “Guerras de Potter” resultaram da reação dos fãs a dois tipos de ataques às suas liberdades: Por um lado houve o empenho de professores, bibliotecários, editores de livros e grupos de liberdades civis contra as tentativas da direita religiosa de banir os livros de Harry Potter das bibliotecas escolares e das livrarias locais. Por outro lado, houve as tentativas da Warner Bros de controlar as apropriações dos fãs dos livros de Harry Potter, sob a alegação de que eles infringiam a propriedade intelectual do estúdio. As duas tentativas ameaçavam os direitos das crianças de participarem do universo imaginário de Harry Potter – uma contestando seu direito de ler, a outra, seu direito de escrever26. No entanto, em seu post sobre as repercussões da decisão do fanfiction.net de proibir todo o conteúdo NC-17, P fez menção a um website da preferência das autoras do Potter Slash Fics, o fosff.net, criado justamente para dar espaço às fics proibidas. Sobre a criação desse site, a autora L escreveu: 25 P. Sobre o FoSFNET. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 15 de outubro de 2009. 26 JENKINS, Cultura da convergência, p. 228. 70 Acho que a luta do pessoal do fosff (www.fosff.net) deve ser colocada nisso também, Malu. Em resumo, algumas autoras que postavam no ff.net se "rebelaram" contra a autocracia existente nesse site: não podia NC-17, não pode isso, não pode aquilo, e se houver reclamação o site não avisa, simplesmente deletam a conta. Então, as moças em questão resolveram montar um site nos mesmos moldes, porém permitindo todo e qualquer tipo de história. Pena que o poder econômico foi mais forte, e não puderam manter o site. Era muito bom, muito bonito também27. Como o assunto continuou em pauta nos e-mails trocados dentro do grupo, e em virtude de nosso desconhecimento sobre a existência desse site, no qual várias autoras brasileiras encontraram espaço para a publicação de suas fan fictionslash, independentemente da aspereza ou do romantismo das suas histórias, a autora P decidiu enviar mais informações a respeito. No seu post, a autora narra percalços típicos dos fãs, como a perda do registro do endereço do site e o desaparecimento de enormes arquivos contendo centenas de publicações, a exemplo do que ocorreu com o Aliança3Vassouras, em virtude das dificuldades surgidas para a administração desses arquivos: O Nome do site era Freedom of Speech, ainda existe a comunidade deles no LiveJournal (http://community.livejournal.com/fosff/profile). O endereço original era www.fosff.net, depois ficou www.fos-ff.net, pois as meninas não pagaram o registro do nome junto aos órgãos competentes em tempo hábil, e perderam o domínio inicial. Foi realmente criado por causa dessa divergência de opiniões com o todo poderoso ff.net, por "falta de liberdade de expressão", como era o post inicial do site original. Tinha um visual menos clean que o ff.net, usava as cores vinho e palha, mas não era visualmente agressivo ou cansativo. A forma de arquivar as fics era bastante fácil, permitia comentários e replicações, enfim os moldes de postagem eram bastante próximos do original ff.net. Permitia postagem em várias línguas, entre elas o português, até porque uma das moderadoras era brasileira28. A seguir, P reproduz a mensagem existente na página do LiveJournal sobre o ocorrido como Freedom of Speech, através da qual tomamos conhecimento de que problemas pessoais e dificuldades no gerenciamento do site fizeram com que o provedor o retirasse do ar, havendo, no momento, pendências financeiras a serem resolvidas para que ele possa voltar à ativa. Em nenhum momento, contudo, houve um pedido da dona do site no sentido de recolher doações dentre os frequentadores. Na verdade, o post é reproduzido por outra fã, que parece tê-lo recebido como uma mensagem particular a ser divulgada e o faz como porta-voz, 27 L. Sobre o FoSFNET, 2009. 28 Idem, ibidem. 71 sem entrar em detalhes sobre os problemas da vida pessoal da autora. O conteúdo completo desse post pode ser lido no anexo A. Abaixo, a explicação da dona do Freedom of Speech, cujos percalços não diferem em nada daqueles encontrados no fandom brasileiro e, aparentemente, também nos fandons internacionais. Okay, deixem-me explicar o que aconteceu com o site. Nosso provedor recebeu muitos e-mails de notificações que o FoS estava sendo marcado como spam. Eles queriam que eu removesse a pessoa (tenho quase certeza de que era apenas um) da nossa lista de e-mails, mas eu não sabia como, então o site foi fechado. Eu contatei a Crys a esse respeito, só para me certificar, e eu estava certa, o site precisa estar no ar e funcionando para que eu possa remover o usuário. Eles não gostaram muito da minha explicação, mas quando eu entrei em detalhes sobre o que nosso site faz, eles pareceram mais compreensivos. Mas agora tenho uma nova conta para pagar e eles não vão colocar o site no ar até que eu pague a conta, o que eu não tenho condições de fazer antes de receber meu próximo salário. Então, é isso aí. Eu sei que o FoS estava do ar há muito tempo, mas espero que ele volte ao ar aí pela semana que vem. E gostaria de avisá-los, para que vocês divulguem de alguma maneira, eu provavelmente vou abrir mão da propriedade do site em breve. [...] Por mais que eu ame o FoS e adorasse continuar tentando melhorá-lo, realmente não tenho mais o tempo e o dinheiro necessário para me dedicar a ele. Então, eu adoraria que houvesse mais alguém que pudesse ser o dono do site. Caso isso não ocorra, o site pode morrer logo, o que eu realmente não gostaria que acontecesse. Obrigada pelos seus questionamentos. Eu não queria preocupar todo mundo (embora, eu acho que talvez devesse) e eu não sabia como entrar em contato com ninguém uma vez que o computador que eu geralmente uso ainda não está em condições de funcionar com as conexões da nossa casa. Eu ainda realmente quero o melhor para o site e aparentemente, neste momento, não sou capaz de fornecer o necessário para sustentá-lo. Uma vez que o site volte ao ar, gostaria de me focar em encontrar alguém que tenha condições de cuidar do FoS29. É irônico pensar que esses autores amadores, que não se dedicam as suas obras tendo o lucro como premissa – muito pelo contrário –, têm de se defrontar com as questões financeiras que o sucesso de seus projetos autorais como fãs angariam. Quanto mais fics para publicar um site recebe, maior o seu arquivo e, consequentemente, mais alta a despesa, o que justifica a “pulverização” das fanfictions slash potterianas brasileiras em pequenos sites de uma única autora, ou mesmo de uma única fic, ou o uso ainda intenso do fanfiction.net. A frustração de ter de abrir mão de um projeto no qual muito tempo, dinheiro e paixão foram dispendidos faz com que as proprietárias adiem o reconhecimento do fim do site e procurem alguém que possa levá-lo adiante. Na página de abertura do Daily Prophet há um doloroso depoimento de Heather Lawver no qual ela historiciza, com paixão, a herança deixada pelo projeto que criou e descreve superficialmente os problemas de saúde que 29 FREEDOM OF SPEECH. Disponível em: http://community.livejournal.com/fosff/ Acesso em out. 2009. 72 enfrenta. Através do post (anexo B), que vale a pena ser lido, podemos compreender a grandiosidade não apenas do projeto desenvolvido por essa ambiciosa e disciplinada adolescente, mas a sua importância no chamado espaço locutório, na constituição da visão de mundo da autora. No entanto, é com amargura que percebemos que Heather está, na verdade, pedindo ajuda para que seu enorme projeto não morra com ela. Em situações como estas, a instabilidade dos arquivos na internet, uma fluidez que de certa forma emula a própria vida, nos faz ansiar por algo mais perene, em que esses trabalhos de inteligência coletiva e de coragem individual não se percam. Heather não se dá por vencida e declara ter um planejamento para que uma equipe possa dar continuidade ao Daily Prophet, que está, inclusive, registrado como uma organização não lucrativa, isento, portanto, de impostos. O que lhe falta é o elemento humano, com disponibilidade financeira e de tempo, luxo raro nos dias que correm. A insistência dos autores de fan fiction em geral, a perseverança com que realizam seus projetos, a publicação e a divulgação de suas histórias, mesmo que isso consuma uma enorme quantidade de tempo e de dinheiro, sempre surpreende. Frente às razões que os levam a persistir, criando e recriando sites ou perfis, mesmo depois de os terem perdido, só podemos acreditar, à guisa de resposta, que a importância da identidade criada através de seus relacionamentos virtuais, como fãs e autores, somada à paixão pelo original do qual se apropriam, é parte fundamental de sua colocação como sujeitos no mundo, sendo que dessa relação com outros que partilham da mesma atitude deriva um grande prazer, que se sobrepõe aos percalços. 2.2 FANARTES E FANVIDS: “PLEASE LEAVE ALL YOUR CONCEPTS OF NORMALITY AT THE DOOR”30 O fandom potteriano brasileiro, como todos os outros fandons relacionados aos produtos da indústria cultural, constitui seu próprio mundo das artes, no que se refere a produções criativas que não aquelas desenvolvidas através de textos narrativos. Esse mundo 30 Por favor, deixe todos os seus conceitos de normalidade na porta”: essa é a mensagem de entrada na página de um dos artistas que postam no site chamado Devian Art, onde se encontram muitas artes do gênero slash potteriano. Escolhemos um de seus trabalhos para ilustrar o presente capítulo. A ideia de transgressão, provocada pelo nome do próprio site que recebe as postagens, é muito comum, e, acreditamos, cara àqueles que escrevem, pintam ou desenham slash inspirados em Harry Potter, pois, se por um lado há o temor de ser considerado anormal pela sociedade em geral, há também a fruição do prazer de fazer algo que é considerado proibido ou imoral. 73 das artes, cujas manifestações são fundamentalmete as fanarts e os fanvids, opera, da mesma forma que as fanfictions, fora do controle dos produtores dos originais inspiradores das transformações e criações promovidas pelos fãs. Através das fanartes os fãs também estão em busca de diálogo, compartilhamento e co-autoria, num espaço para além do julgamento do que é socialmente aceito. Neste tópico, apresentaremos alguns poucos exemplos de fanarts e fanvids criados por fãs não necessariamente brasileiros, que julgamos significativos dentre uma imensa produção, que está disponível virtualmente para aqueles que, uma vez tendo entrado em contato com sua existência, irão se surpreender com a quantidade e a qualidade de material postado. Nossa primeira escolha de fanart é a que adorna a página do Potter Slash Fics, grupo do qual passamos a fazer parte, na Yahoo!Groups. De inspiração oriental, a fanart impressiona pela presença de dois animais poderosos que se enfrentam – o tigre e o dragão – sobre o símbolo do equilíbrio, Yin e Yang. Não usual para o fandom potteriano, uma vez que não apresenta imagens dos personagens da série, a arte provavelmente remete à força e ao equilíbrio, dois elementos necessários à transgressão que envolve escrever slash pautada em uma obra infanto-juvenil. Seu objetivo talvez seja causar uma forte impressão e suscitar no leitor a ideia de que é preciso ser valente para participar da leitura e da escrita desse subgênero de fanfictions. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que os dois animais escolhidos são elementos masculinos de natureza selvagem, que se enfrentam de forma equilibrada, o que pode remeter também à relação entre casais com muitos fãs no slash potteriano, como os chamados Drarry (Draco/Harry) ou Snarry (Snape/Harry): machos que aparentemente se repelem mutuamente, mas que, sob o manto da agresividade, escondem sua ardente paixão um pelo outro. Esse é um enredo muito comum em todos os fandons de slash. 74 Ilustração 6 - Potter Slash Fics Fonte: GROUPS YAHOO, Potter Slash, 2009. No quesito criatividade e de crossover de gêneros comuns no imaginário do consumidor de cultura pop e direcionados ao público infantil está o ícone a seguir reproduzido, depositado no álbum de fotos do Potter Slash Fics por uma das autoras do grupo. Trata-se de Ênio e Beto, dois conhecidos personagens do programa infantil Sesame Street (Vila Sésamo, no Brasil), que aparecem travestidos de Harry Potter e professor Snape, cabendo ao simpático Ênio o papel de Potter, que, na imagem, abraça sugestivamente o carrancudo Snape, papel bem de acordo com a índole de Beto. Embora possa parecer apenas um abraço amigável, sabe-se que na série original o gesto jamais aconteceria entre Harry e seu professor de Poções, do que se origina a piada presente no subtexto, que provavelmente só os slashers compreendam: 75 Ilustração 7 – Vila Sésamo slash Fonte: GROUPS YAHOO, Potter Slash, 2009. Além das fanarts que adornam um site ou uma fan fiction específica, uma das manifestações mais comuns de arte relacionada ao universo fanfiqueiro são as capas ou as propagandas, que visam a chamar a atenção dos leitores para uma fan fiction específica. Há vários tipos de capas disponíveis na web e variados recursos são utilizados para sua criação. Mesmo o “conservador” fanfiction.net permite a expressão das fanarts através da postagem de capas para as histórias, se assim os autores o desejarem. A melhor maneira de explicarmos quais os tipos mais comuns de capas disponíveis é através da exemplificação. Para tanto, escolhemos uma capista brasileira que trabalha não apenas para a ilustração de suas fics, mas sob solicitação de outros autores, sempre em forma de voluntariado, que é parte essencial de qualquer fandom. A seguir, um exemplo de capa para uma fic do gênero Romance, em que são utilizados recursos não computacionais para a criação e a postagem. Esta capa, ainda que tenha sido influenciada pelo filme, pois ele possivelmente se inscreveu no imaginário da artista-fã, apresenta personagens cuja aparência resulta fundamentalmente do traço de quem a criou, mesmo que o resultado final remeta aos atores contratados pela Warner Brothers: 76 Ilustração 8 – Como eu vejo Fonte: MMG PHOTOBUCKET, Mobile Photobucket, 2009. Na sequência, outro exemplo do trabalho da mesma capista, agora para outra fic romântica que, no entanto, apresenta o mesmo shipper H/G (Harry e Ginny). Nele, percebemos claramente a opção pela caracterização dos personagens através dos atores que os personificam no cinema. Usam-se, assim, recursos de computação gráfica para a criação de uma capa coerente com a fic a qual se destina: Ilustração 9 – Por você. Fonte: MMG PHOTOBUCKET, Mobile Photobucket, 2009. 77 Finalmente, apenas para ilustrar uma tendência muito comum nas fanarts, apresentamos uma capa de influência japonesa, na qual os personagens de Harry Potter são desenhados como personagens de mangá, numa clara confluência da cultura pop que subsidia o imaginário dos jovens artistas. Anglo-saxões cujas aventuras são narradas em volumosos tomos de prosa podem ser travestidos de heróis orientais de quadrinhos, sem que passem despercebidos: eis, mais uma vez, o conflitado casal Harry e Ginny, apresentado pela mesma capista: Ilustração 10 – Água e vinho Fonte: MMG PHOTOBUCKET, Mobile Photobucket, 2009. Nas fanarts para slash, as tendências são as mesmas. No entanto, faz-se necessário lembrar, mais uma vez, que a transgressão é marca fundamental nos textos e nas artes do universo slasher e dificilmente personagens seriam poupados em virtude de serem dirigidos primordialmente ao público infantil. Tomemos o caso do shipper Drarry, por exemplo, que vive sua adolescência e a consequente explosão da sexualidade que a acompanha. Embora J. K. Rowling tenha amenizado as questões sexuais e de gênero em seus livros, muitos fãs não os percebem assim, castos e, portanto, muito diferentes da maior parte dos adolescentes da vida real. Sua leitura pessoal em arte, portanto, irá diferir do quadro apresentado no cânone. Estão disponíveis nas primeiras páginas de busca na internet imagens trabalhadas para que os personagens do shipper pareçam ser os atores dos filmes da franquia Harry Potter, como se eles tivessem sido secretamente fotografados na sua vida íntima real. Em outro estilo, 78 há artes em que os traços a eles emprestados pouco dependem das características dos atores, remetendo mais às descrições presentes nos livros de J. K. Rowling. Observemos as seguites fanarts, do shipper H/D (Harry e Draco): Ilustração 11 – Harry and Draco Slash I Fonte: PHYRE PHOENIX, Draco and Harry slash, 2009. Ilustração 12 – Harry and Draco Slash II Fonte: KIBESTEIRA, Harry Potter Gay, 2009. Embora sugestivas, as fanarts reproduzidas anteriormente são, sem sombra de dúvida, extremamente leves quanto ao conteúdo sexual, pois apenas sugerem, sem explicitar. Os 79 fandons nacional e internacional fervilham de cenas picantes e explícitas, muitas bem elaboradas e construídas à perfeição, apresentando seus shippers favoritos – Harry/Draco, Harry/Snape, Lupin/Sirius, apenas para citar alguns dos mais adorados – em pleno gozo de sua paixão. Ainda dentro do shipper D/H, para fins de ilustração da presente pesquisa dentro das normas do decoro, escolhemos uma imagem em que o ato sexual em si, embora retratado, não implica na exibição de órgãos genitais ou nudez ofensiva. Na imagem, inicialmente poderíamos observar um Harry e um Draco mais maduros, provavelmente numa fase pósHogwarts, percepção essa pautada apenas no traço da autora, que nos mostra corpos maduros e feições marcadas. Atentamos, também, para o clima de romantismo sutilmente insinuado nas roupas de Draco – casaca longa e camisa com laço desfeito –, bem como na expressão de paixão e de prazer estampada em seu rosto. Contudo, ao ler os dados que acompanham a imagem, postada no Live Journal, compreendemos que possivelmente a intenção da artista difere da interpretação inicial: Ilustração 13 – Harry and Draco Slash III Fonte: LIVE JOURNAL, Pics, 2009. 80 Sob o título Criar um pouco de diversão, numa tradução livre de nossa parte, em seu post sobre a obra31, a autora apresenta como personagens da fanart não apenas os óbvios Harry Potter e Draco Malfoy, mas também Hermione Granger, não representada na cena, mas que seria a responsável por perturbar os meninos através de magia, para criar um pouco de diversão. Todos estariam em Grimmald Place, casa que Harry herdara de seu padrinho, Sirius, e que serve de esconderijo para os bruxos que lutam pelo bem, durante os anos em que Harry ainda é estudante. Se a artista imaginou a cena em um dos longos verões em que Harry e seus dois melhores amigos estiveram escondidos em Grimmald Place, causa espanto, obviamente, a maturidade dos corpos e dos rostos desenhados a lápis, escaneados, retraçados e coloridos no Photoshop. Poderíamos especular sobre um desejo adulto que se infiltra nos traços da autora do retrato adolescente. Essa imagem, entretanto, levanta outra questão deveras intrigante: uma observação mais atenta da imagem remete aos padrões femininos de inconsciente de parte de quem criou a arte e mesmo de quem a vê. Se este é um ato sexual em andamento – e a palavra thrust, que significa investir ou enfiar, confirma que sim –, a anatomia dos corpos pode colocar em dúvida a eficácia da posição retratada na imagem, condiderando-se que são dois homens. Trata-se de uma posição sexual muito mais comum entre um homem e uma mulher. Evidentemente, não significa que não possa ser adotada por dois homens, mas o ângulo desenhado parece mais propício à indicação de penetração vaginal, e não anal, ainda que o casal retratado não fosse composto por membros do mesmo sexo. Essa confusão de identidades entre o masculino que é manipulado pelas autoras e a projeção do feminino que se passa de forma até certo ponto inconsciente, na representação excitante de um encontro sexual – seja essa representação escrita ou desenhada – era ainda mais comum nos primórdios do slash, em virtude do grande desconhecimento, de parte das autoras, de como se dá o sexo entre dois homens. Cenas em que a penetração ocorria sem o uso de lubrificantes são o exemplo mais bem acabado de como essas escritas sempre foram, necessariamente, de autoria de mulheres com o objetivo de excitar outras mulheres, e não homens gays. Embora, como já mencionamos, o número de gays escrevendo slash tenha aumentado consideravelmente, deve haver diferenças significativas entre as fics por eles escritas e aquelas escritas por mulheres heterossexuais, sendo que a identificação e a 31 Artist: hollyboo2001 Title: ―Stir Up Some Fun‖ Character(s): Harry Potter, Ron Weasley, Hermione Granger Media: pencil sketch, scanned, retraced and colored in Photoshop Notes: Things were getting a little dull around Grimmald Place, so Hermione decides to *stir* things up a bit. XD. LIVE JOURNAL, Pics, 2009. 81 compreensão dessas diferenças demandaria outra pesquisa, não sendo possível, aqui, a análise com essa finalidade. Um exemplo bastante leve que pretende resumir do que trata o slash no fandom potteriano também nos chamou a atenção, pelo humor com que aborda os shippers mais comuns. Satirizando a ideia de trama nas fanfics slash e “denunciando” a presença de PWP (Plot? What Plot?, ou seja, histórias que não têm enredo, pois o objetivo é chegar rapidamente às cenas de sexo, como nos vídeos pornôs), a autora da sequência de quadrinhos procura abordar todas as possibilidades de encontros amorosos já exploradas pelos autores de fanfictions desse subgênero (e algumas que não pertencem, como casais heterosexuais): entre amigos, entre inimigos, de acordo com o canon, entre os gêmeos, entre vilões, do gênero angst, incesto, entre professor e aluno, Out Of Character e, por último, do tipo “errado”, ou seja, que provocaria revolta de boa parte do fandom, mas que, acreditamos, é possível que já tenha sido escrito. A ironia já se revela no título da sequência, apropriadamente chamada O guia Harry Potter para slash, sugerindo que tudo o que existe de slash deve estar ali retratado, e provocando risos justamente porque a piada tem sua base de realidade. Muitas fanfics slash de Harry Potter – e aí se inclui também o fandom potteriano brasileiro – apresentam enredos simples, em alguns casos quase inexistentes, completamente alheios às possibilidades que o canon determina, simplesmente porque o objetivo é brincar com personagens dos quais se gosta em situações de sexo consideradas excitantes. Assim, a preocupação literária, no sentido de se salvaguardar a existência de uma boa história, também pode desaparecer no reino da fantasia sexual, mesmo feminina. 82 83 Ilustração 14 – The Harry Potter Guide to Slash Fonte: LILLY KITTEN FANART, A Harry Potter Guide to SLASH, 2009. Na internet, pelas mãos dos fãs-autores e artistas, Harry Potter também já chegou à arte sequencial, inclusive em slash. Dentre as muitas histórias disponibilizadas virtualmente, 84 uma em especial nos chamou a atenção pela sofisticação do crossover, pelo apuro da linguagem, pela beleza do traço e pela paródia iconoclasta. Apresentamos-a como exemplo de fanarte em arte sequencial, os chamados quadrinhos, ou HQs, no Brasil. A HQ foi circulada nos e-mails do Potter Slash Fics. Trata-se de um slash bastante leve, intitulado Quando Draco encontrou Harry (uma carta da selva), podendo ser lida integralmente no anexo A. De acordo com o post do autor, o trabalho foi realizado para um HP Art Fest, sendo que esta versão, postada no Live Journal, é a final. O prompt da Fest, ou seja, o tema proposto, era H/D no papel de Tarzan e Jane, ficando a critério dos autores qual personagem da série Harry Potter encarnaria os papéis masculino e feminino dos personagens da clássica novela de Edgar Rice Burroughs. O autor reconhece que sua HQ traz embutida uma história prévia para sua melhor compreensão e planeja realizá-la, bem como uma sequência para a que já existe. Nessa fanfiction do gênero crossover, realizada em quadrinhos, Draco está em expedição na selva, encontra Harry e entre eles nasce uma afeição recíproca. Em uma longa carta a sua mãe, cujo texto perpassa todos os quadros da HQ, ele conta, de modo rebuscado, aventuras desmentidas pela sequência de desenhos e reflexões sobre os relacionamentos de sua entourage, igualmente satirizados. Os modos refinados, a linguagem sofisticada e a postura efeminada de Draco o apresentam ao leitor como um mimado “príncipe”, o rico herdeiro dos Malfoy, da mesma forma que o canon, mas sob uma nova e irônica perspectiva, um tipo de interpretação comum aos slashers, mas completamente nova para os demais leitores de Harry Potter. Da mesma forma que esses fãs escritores de fan fiction costumam tomar emprestados personagens e universos ficcionais oriundos dos mais variados produtos da cultura pop e são influenciados por essa cultura na produção de seus textos, os fãs que produzem vídeos se apropriam de imagens e músicas como sendo o material com o qual constroem seus vídeos. Essas imagens são retiradas de seu contexto original e a elas pode ser atribuído um novo significado, ou melhor, no caso do fandom potteriano de fan fiction slash, significados alternativos que dependem da montagem das imagens no vídeo e da música eleita para ambientar a ideia de romance e desejo entre os personagens escolhidos. Segundo Jenkins, há um prazer experimentado pelo fã ao engendrar esses vídeos ou ao assisti-los, o de produzir e divulgar os subtextos que ele vê nos originais, através de gestos e olhares que, no produto final, o vídeo, revelam significados que estariam ocultos nos originais. Ele cita a fala de um fã, denominado apenas M.D.V., que, em entrevista pessoal, lhe teria dito que descobre novas formas de usar as imagens de, no caso, uma determinada série televisiva ao abaixar o volume completamente: “Se eu rodasse essa mesma cena e você ouvisse as palavras do original, você 85 não a veria do jeito que vê em meus vídeos”32. Cenas em que protagonistas do sexo masculino trocam longos olhares, fazem algum tipo de contato físico não agressivo e expressam proximidade são as preferidas para os vídeos com imagens de atores que interpretam os originais. A escolha da música que acompanha as imagens também é fundamental para atribuir significado a elas, de maneira a unificar o comentário que é apresentado no vídeo. Falando a Jenkins, M.V.D. defende: As imagens puxam as palavras, enfatizam as palavras, da mesma forma que as palavras enfatizam as figuras. Se eu tiver feito um bom trabalho com um vídeo, consigo representar uma emoção e posso manter aquela emoção através da música. Eu posso levar aquela emoção a um novo nível de profundidade através das minhas imagens e posso fazer com que você passe a ver o programa [televisivo] sob um novo ângulo33. Da mesma forma que Jenkins – pioneiro que há mais de uma década pesquisou vídeos realizados com as tecnologias disponíveis na época, principalmente o VCR –, não encontramos nenhum fanvid cuja sonorização tenha sido feita com música de autoria do próprio fã, embora as tecnologias hoje sejam outras e tenhamos buscado materiais postados no YouTube, o revolucionário site que permite aos usuários carregar e compartilhar vídeos. Embora reconheçamos que tais vídeos possam existir, acreditamos que a presença de músicas comercialmente distribuídas e bem sucedidas dentro da cultura pop é tão forte no imaginário dos fãs que seu uso se torna obrigatório, como grande fonte de inspiração e como linguagem de compartilhamento de emoções, com outros fãs. De acordo com Jenkins, a contribuição fundamental dos criadores de fanvids está, na maior parte dos casos, na justaposição criativa das imagens e das palavras de outras pessoas às músicas, o que, no entanto, constrói um significado original. Segundo o autor, 32 If I played that same scene and you heard the original words, you wouldn‘t see it the way you do in my videos. JENKINS, Textual poachers, p. 228. 33 Ibidem, p. 225. 86 a fanart é importante como meio para realizar comentários acerca do programa original e como uma forma de criação cultural com seus próprios princípios e tradições estéticas. As fanarts também desempenham um papel central na solidificação e manutenção da comunidade de fãs; a criação, a exibição e a troca de vídeos criam as condições para uma forma de arte comunitária, contrastando com a cultura da qual é derivada em sua recusa em auferir lucros e seu desejo em compartilhar seus produtos com outros que os valorizem. [...] O que os vídeos articulam é o que os fãs têm em comum: suas compreensões, seus interesses mútuos, suas fantasias coletivas34. Esses vídeos reforçam a compreensão compartilhada por outros fãs acerca dessas relações: a de que há um subtexto homossexual na relação entre os personagens. Fornecem, também, importantes elementos para o “banco visual” do imaginário dos escritores de fanfiction. Uma simples busca no YouTube de vídeos nos quais constem as palavras slash e fan fiction resulta em 204 vídeos, alguns contendo propagandas para fanfics postadas, outros, como os de M.D.V., configurando-se como colagens de imagens com uma música, o que resulta na mensagem pretendida: há amor e desejo presentes nas cenas apresentadas. Lastimamos que o tipo de suporte através do qual esta pesquisa está sendo apresentada não possibilite a inclusão de arquivos digitais com som e imagem. Mesmo assim, procuraremos apresentar dois fanvids bem recentes do fandom potteriano de slash, com alto número de visitações. São produções internacionais, escolhidas como exemplo de qualidade do material disponível. Em primeiro lugar, recomendamos um fanvid com imagens selecionadas dos filmes produzidos pela Warner Brothers e cuja trilha sonora foi buscada no clássico musical O fantasma da ópera. De acordo com a informação postada pelo autor no YouTube, o vídeo se divide em duas partes: a primeira seria “quase canon”, pois mostra Snape sempre perto de Harry, cuidando-o e protegendo-o de investidas do mal; já a segunda parte é inspirada num fanfic de preferência do autor, embora não de sua autoria, intitulada Tea series, cujo hiperlink ele disponibiliza. É muito interessante observar como autores de fan fiction angariam fãs para si, que se dispõem a divulgar o trabalho do qual gostaram da mesma forma que comentamos sobre um livro de nossa preferência com outros leitores amigos e insistimos para que o leiam. Apenas sua forma de divulgação é mais sofisticada, abrangente e eficiente do que nosso bate- 34 Fan art is important as a means of commenting on the original program, as a form of cultural creation with its own aesthetic principles and traditions. Fan arts also play a central role in solidifying and maintaining the fan community; the creation, exhibition, and exchange of videos crate the conditions for a communal artform, one contrasting with the commercial culture from which it is derived in its refusal to make a profit and its desire to share its products with others who value them. […] What the videos articulate is what the fans have in common: their shared understandings, their mutual interests, their collective fantasies. JENKINS, Textual poachers, p. 249. 87 papo informal, tratando de materiais não impressos e não comercializáveis. O vídeo abre com uma vinheta, como se se tratasse de um material divulgado por uma produtora comercial, com a chamada Ariel Lindt presents, e prossegue com um poema, de autoria de Frank O‟Hara: Quando estou em sua presença Sinto que a vida é forte E irá derrotar seus inimigos E todos os meus E todos os seus E os seus em você E os meus em mim35 Parece-nos uma ótima escolha para um casal de protagonistas que tem de lutar por um amor proibido, numa luta que não é apenas externa, mas, fundamentalmente, íntima. A sucessão de imagens justapostas com a música é extremamente convincente. Há, inclusive, uma cena que intencionalmente sugere um beijo entre Harry e Snape, sendo que o desfecho, com trechos na tela do capítulo preferido do autor retirados da fan fiction Tea series, casa perfeitamente com o clima angst de final feliz, proposto pelo vídeo, como podemos perceber na frase traduzida do frame abaixo reproduzido: “Por favor, me diga que estamos aqui”, sussurrou Harry, pressionando suas cabeças, testa a testa. Sua respiração, seu calor, coçavam o nariz de Snape. “Por favor, me diga que estamos aqui. Que nós conseguimos. Que nós dois conseguimos. Me diga que fizemos isso”. 35 When I am in your presence I feel life is strong And will defeat all its enemies And all of mine And all of yours And yours in you And mine in me Poem by Frank O‘Hara. YOU TUBE. Harry Potter: All I ask of you – Harry/Snape SLASH. Disponível . Acesso em: 04 nov. 2009. Tradução nossa. em: 88 Ilustração 15 – Harry e Snape – All I ask of you Fonte: YOU TUBE, Harry Potter, 2009. Nossa segunda escolha recai sobre uma impressionante propaganda para um fanvid realizado com base em uma fan fiction (o autor se refere a ela como o livro, atentemos para sua compreensão de fanfic, que inspirou o filme) que utiliza filmagens realizadas pelo fã, e não colagens de filmes produzidos pela Warner Brothers. Contudo, devido à qualidade do material, em especial das vinhetas que imitam à perfeição as da série original (ver imagem abaixo), seria possível acreditar que estamos diante de um trailler da Warner sobre uma possível continuação da série Harry Potter: Ilustração 16 – James Potter and the Hall of Elders' Crossing Theatrical Trailer Fonte: YOU TUBE, James Potter, 2009. 89 A história é sobre James Potter, filho de Harry, que também tem de enfrentar as Artes das Trevas promovidas por bruxos do Mal. Mais uma vez o mundo se encontra em perigo e James tem de se defrontar também com a herança de ser filho de um bruxo tão afamado, Harry Potter, e mostrar seu valor. Esses são importantes exemplos de transmídia realizados por fãs, não pela indústria do entretenimento. Retomando, transmídia é um conceito trabalhado por Harry Jenkins em seu livro Cultura da Convergência, que se refere a narrativas realizadas através de múltiplos canais midiáticos, de forma que todos os acessos à história contribuem para a compreensão que o leitor, também espectador, também navegador, ou mesmo jogador, tem da história. Através de diferentes pontos de entrada, a narrativa transmidiática pode vir a conquistar o leitor de forma que ele se envolva com seu universo ficcional. Evidentemente os fãs não têm condições de bancar múltiplos acessos as suas histórias da mesma forma que um estúdio tem, mas a compreendemos que a simples existência de fanarts e fanvideos originados de uma mesma fan fiction já constitui mais de uma porta de entrada para aquele universo ficcional, representando, assim, um investimento transmidiático – normalmente resultado de um esforço coletivo – de proporções mais modestas, embora significativas. 3 A TRANSGRESSÃO DAS FRONTEIRAS DE GÊNERO E A TEORIA EVOLUCIONISTA Neste capítulo enfatizamos a transgressão de gênero, no sentido de parâmetros sexuais, pertinentes ao slash na visão de seus principais pesquisadores, embora reconheçamos sua característica de permanência enquanto gênero narrativo, escrito e lido num suporte tecnológico, porém nos mesmos parâmentros que as narrativas românticas anteriores ao advento de tais tecnologias. Em seus primeiros escritos sobre o tema, Henry Jenkins descreveu o subgênero slash como sendo uma "reação contra a construção da sexualidade masculina na televisão e na pornografia", relacionando-o a algo semelhante à transgressão libertadora da hierarquia de gênero descrita por John Stoltenberg – uma recusa a escolha de objetos fixos em favor de uma fluidez na identificação erótica, uma recusa de caracteristicas de gênero predeterminadas em favor do brincar com possibilidades andrógenas1 (Tradução nossa). A referência de Jenkins é ao trabalho de John Stoltenberg, que, em 1989, publicou uma série de ensaios em um livro denominado Refusing to be a man: essays on sex and justice (Recusando-se a ser um homem: ensaios sobre sexo e justiça) e é, ainda hoje, um conhecido ativista feminista e gay, atualmente editor da revista AARP, sobre envelhecimento humano. Preocupado com a pornografia como um elemento de estímulo à degradação e à violência contra a mulher, Stoltenbergh escreveu contrariamente ao que ele denominava hierarquia de gênero e, segundo Jenkins, a fan fiction slash confronta a identidade masculina como repressora, fornecendo alternativas para a definição do que é, ou não, pertencente ao gênero. Não que essas histórias, ao ver do pesquisador, provenham de uma agenda estruturada no sentido de apresentar uma nova caracterização da masculinidade, ou mesmo venham a oferecer uma agenda neste sentido. Para ele, a melhor característica do slash consiste não naquilo que ele responde, mas naquilo que ele questiona. Jenkins ainda realça a importância de não reduzir este subgênero exclusivamente em torno da temática sexual, minimizando a importância da estruturação da história. Ele afirma que o "slash é menos um gênero sobre 1 A reaction against the construction of male sexuality on television and in pornography...liberating transgression of gender hierarchy John Stoltenberg describes - a refusal of fixed-object choices in favor of a fluidity of erotic identification, a refusal of predetermined gender characteristics in favor of a play with androgynous possibility. JENKINS, Textual Poachers, p. 189. 91 sexo, do que um gênero sobre as limitações da masculinidade tradicional e sobre a reconfiguração da identidade masculina" (Tradução nossa)2. Há uma conhecida sigla dentro de todos os fandons que se refere à ausência de trama, aproximando as fanfictions slash da pornografia no sentido de que a caracterização de personagens e a construção da história são pífias, servindo apenas como elementos passageiros que propiciam o que realmente interessa ao escritor e seu público: a apresentação da cena de sexo. A sigla PWP (Plot, what plot?), que significa "Enredo, que enredo?", expressa bem o humor dos fanfiqueiros, como também a preocupação da maior parte deles com a qualidade das histórias produzidas. A presença feminina nesse subgênero ainda é grande, mas, em seus primórdios era quase que exclusiva. Em artigo publicado na revista Bitch3, a jornalista Noy Thrupkaew informa que a fan fiction do tipo slash nasceu ao final da década de 1960, quando autores “inventivos” passaram a publicar histórias em fanzines retratando o envolvimento amoroso entre o Capitão Kirk e o Senhor Spock, personagens de Jornada nas Estrelas. Esses indicativos levam a crer que a escrita de slash teria surgido no mesmo fandom e na mesma época que a escrita das fanfictions em geral, utilizando o mesmo meio de divulgação, as fanzines. O próprio Jenkins cita tentativas frustradas, de sua parte, de comprar fanzines exclusivamente slash, quando a internet ainda não era o principal veículo para essas histórias. Havia uma desconfiança, de parte dos editores, mulheres, em relação ao elemento masculino que desejava ter acesso àquele tipo de erotismo. Provavelmente as mulheres acreditavam que aquele homem devia estar procurando algum tipo de material pornográfico e que seus trabalhos, transgressores, haveriam de ofendê-lo. "Várias vezes, quando eu comprava fanzines com slash, os editores escreviam notas explicando que eles possuíam poucos leitores masculinos e me assegurando que eu poderia ser reembolsado se ficasse ofendido"4 (Tradução nossa), lembra o autor. Ora, é inevitável percebermos a importância do elemento de transgressão nessas histórias, uma vez que se espera que o público masculino se sinta melindrado com seu conteúdo. O objetivo, sem dúvida, é o melindre, a ruptura com o estabelecido. Camile Beacon Smith, uma das precursoras sobre o tema já salientava a questão da transgressão como sendo imensamente prazerosa para as mulheres pertencentes a fandons slash. Percebe-se uma construção de imaginário de pertencimento a algo especial, furtivo, secreto mesmo, de parte de pessoas que, talvez, por sua inserção na sociedade – mães, donas 2 Slash is not so much a genre about sex as it is a genre about the limitations of traditional masculinity and about reconfiguring male identity. Ibidem, p. 191. 3 BITCHMAGAZINE. Fan/tastic Voyage. Disponível em: . Acesso em: 07 ago. 2006. 4 [...] several times when I ordered slash zines the editors wrote notes explaining that they have few male readers and assuring me that I can receive a refund if I am offended. JENKINS, Textual Poachers, p. 191. 92 de casa, trabalhadoras comuns, sem altos cargos ou algum outro tipo de projeção – não se percebem como especiais e se deleitam em se saber "fora do comum", capazes de coisas que jamais seriam esperadas de sua parte5. Essa ruptura não se dá, exclusivamente, através da manipulação dos personagens escolhidos – heterosexuais em seu contexto canônico – em participantes de um ato sexual de natureza homosexual. Há mais em jogo do que o ato em si. Levar os personagens à cópula e trabalhá-los depois do clímax sexual ter sido atingido parece ser fundamental para o prazer das leitoras e escritoras do gênero. A principal ênfase do slash parece consistir nas emoções que levam ao ato sexual em si. Quando a cena de sexo é retratada em detalhes, mesmo em histórias que forneçam mais pormenores do que a média, a ênfase ainda assim se encontra presente nas emoções e nos pensamentos dos dois personagens, voltada também mais para a construção de imagens de sensualidade do que para imagens descritivas de penetração e ejaculação, mais presentes na pornografia voltada para o público masculino. A própria extensão das narrações de cenas de sexo explícito confirma essa diferença, entre o pornográfico masculino e a fan fiction slash, que também poderia ser considerada um tipo de pornografia, mas cujos paradigmas são outros. Um dos motivos, acreditamos, que marca esta diferença é de que há muito pouco a ser descrito na cena de sexo em si, dentro do paradigma da pornografia tradicional, imagética. Sendo a fan fiction uma prática literária extensiva, ou seja, uma narrativa com as características dos romances, há uma preocupação de oferecer ao leitor uma história bem construída, junto a qual ele possa acionar a suspensão da descrença e vivenciar uma nova forma de erotização de um personagem previamente por ele reconhecido. A razão pela qual o foco nas emoções é fundamental para os escritores e leitores de slash reside precisamente na suposta reconstrução, numa nova forma de pensar – e consequentemente escrever – a masculinidade como tradicionalmente apresentada na sociedade. A escolha de personagens evidentemente distanciados de suas emoções – como os protagonistas da série televisiva Starsky and Hutch, ou o implacável professor da disciplina de Poções, Severus Snape, da série Harry Potter – para protagonizarem essas histórias parece ser um elemento base da sedução que o gênero provoca. Henry Jenkins vê nessa premissa um ponto de concordância entre a teorização apresentada pelos acadêmicos que estudam o gênero e aquela realizada pelos fãs em seus fóruns de debates. Os fãs observam o original em questão a partir de muitos ângulos diferentes e brincam com as possibilidades deixadas em aberto pelo autor, perguntando-se continuamente o que 5 BACON-SMITH, Camille. Enterprising women – television fandom and the creation of popular myth. Philadelphia, USA: University of Pennsylvania Press, 1991. 93 poderá vir a acontecer nos novos desdobramentos da trama, ao mesmo tempo em que reinventam o que já foi publicado, estimulando a manutenção de um criativo jogo de possibilidades através da reapresentação da pergunta “e se...?”. No caso das autoras de slash, essa pergunta parece destinada a desafiar o que é canônico nas relações afetivas entre os personagens, ou seja, apresentado como verdadeiro pelo autor do original. As autoras de slash propõem questionamentos do tipo: “E se o aparente ódio existente entre os personagens Draco Malfoy e Harry Potter estivesse, na verdade, encobrindo uma atração mútua?” ou “E se o arrogante e misantropo professor de Poções, Severus Snape, não fosse tão solitário quanto parece?”. No entanto, Clerc alerta que o tipo de texto escrito pelas autoras dedicadas ao slash não pode ser confundido com textos escritos tendo em vista o público gay, uma vez que as histórias são escritas para outras mulheres e, segundo a autora, mantém “um olho nas sensibilidades tipicamente femininas”6 (Tradução nossa), embora realizadas por protagonistas homens. Thrupkaew, entretanto, acredita que os enredos que justificam a formação de casais masculinos se tornaram tão diversos que não é possível distinguir uma tendência principal na escrita de slash e teorizar sobre ela. Acreditamos que ela está certa no que se refere ao fandom em língua inglesa mas, no caso do potteriano brasileiro percebemos ser possível distinguir um tom romântico que cruza, em maior ou menor grau, muitas das fanfics disponíveis em língua portuguesa, de onde a ideia de “sensibilidades femininas” nos chama a atenção. Ainda assim, diversos os enredos ou não, o questionamento acerca dos motivos que levam mulheres – ao que indicam as pesquisas realizadas até então, predominantemente heterossexuais – a escrever narrativas ficcionais que enfocam relações de natureza erótico-amorosa entre dois homens, é inevitável. Para Thrupkaew, a escrita de slash, como a escrita de qualquer tipo de fanfiction, oferece aos consumidores de cultura pop a oportunidade de se transformarem em criadores, forjando um tipo de diálogo entre o fã e os personagens do enredo original. A própria Thrupkaew, porém, apresenta uma teoria sobre as questões de gênero subjacentes ao envolvimento com a escrita e leitura desse subgênero, ao afirmar que o slash interroga abertamente as noções estáticas de masculinidade e feminilidade apresentadas pela cultura pop, reinventando conceitos sobre os gêneros. Diz a autora: 6 […] with an eye to feminine sensibilities. CLERC, Susan. Estrogen brigades and big tits threads. In: BELL, David; KENNEDY, Bárbara. The cibercultures reader. New York: Routledge, 2000, p. 228. 94 O slash permite aos seus autores subverter as já cansadas relações homem/mulher da TV, ao mesmo tempo em que eles interagem e demonstram maestria sobre o material original de um show (fundamental para toda a fanfic). Escrever personagens masculinos como amantes permite um sentido mais rico de possibilidades do que a Thrupkaew duplicação do já velho conhecido romance entre menino e menina, apresentado pela maior parte das séries de TV7 (Tradução nossa). A autora parece crer que, na escrita realizada por essas mulheres, sobre relações homoeróticas entre dois homens, haveria um elemento de reconfiguração da imagem e do comportamento masculinos, num movimento que implicaria a tentativa de apropriação das características masculinas e adaptação delas a padrões considerados femininos. Essa teoria também é apresentada no já citado Destina‟s Fan Fiction, no qual se afirma: As mulheres muitas vezes infundem, em um personagem masculino, traços e características de personagens femininos em termos de carinho e compartilhamento, e algumas teorias afirmam que isso ocorre como uma forma de compensar a ausência de tais características em seus parceiros na vida real8 (Tradução nossa). Também Anne Kustritz, em artigo publicado no Journal of American Culture9, compreende o slash como pertencendo às práticas dos fandons já há algum tempo, e aponta suas características como sendo desafiadoras aos padrões estabelecidos para a construção de romances, comumente refletores das bases patriarcais sobre as quais a sociedade é construída. Nesse sentido, ela escreve: 7 Slash enables its writers to subvert TV‘s tired male/female relationships while interacting with and showing mastery over the original raw material of a show (key for all fanfic). Writing male characters as lovers allows a richer sense of possibility than duplicating the well-worn boy/girl romances coughed up by most TV shows. BITCHMAGAZINE, Fan/tastic Voyage, 2006. 8 “Women often imbue male characters with the traits and characteristics of female characters in terms of caring and sharing, and some theories say this is to make up for a lack of such characteristics in the real-life male counterparts”. LYRICALMAGIC, Destina's Fan Fiction FAQ (Frequently Asked Questions) Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2006. 9 KUSTRITZ, Anne. Slashing the Romance Narrative. Journal of American Culture, 2003, v. 26. n. 3, p. 37184. Disponível em: . Acesso em: 16 mai. 2006. 95 Ele [o slash] permite às mulheres construírem narrativas que subvertem o patriarcado ao se reapropriarem dos heróis prototípicos que geralmente reproduzem a posição das mulheres, de desempoderamento social. Independentemente de se essas narrativas podem, realmente, mudar as condições concretas das vidas das mulheres, permanece o fato de que grupos como o RSM10 estão escrevendo uma história que é radicalmente diferente das tradições do romance padrão, e estão se divertindo muito ao longo do processo11 (Tradução nossa). Salmon e Symons, em seu livro Warrior Lovers12, igualmente parecem corroborar tais ideias. Os autores, baseados na experiência de Symons como estudioso da teoria evolutiva, situam a escrita de slash no contexto das escritas ficcionais românticas, dirigidas ao público feminino. Eles definem os romances convencionais, geralmente bem sucedidos junto ao público (mainstream romances) como sendo, de modo geral, aqueles que apresentam uma história de amor na qual a heroína tem de “superar obstáculos para identificar, ganhar o coração e casar-se com aquele homem que é o escolhido para ela”13 (Tradução nossa). Contudo, afirmam os autores, essa definição, conquanto uma generalização, também é bastante adequada para definir as histórias do tipo slash, embora o casal em questão seja formado por dois personagens do sexo masculino. Há um grande debate internacional acerca dessa interpretação e muitas das fanarts que observamos, incrivelmente explícitas e mesmo agressivas, nos levam a questionar até que ponto tal generalização poderia ser feita a um fandom tão amplo como o que abriga o termo slash. Jenkins ressalta a importância da escuta atenta da teorização tecida pelos fãs, profundos conhecedores do universo que amam reconstruir. Diferentemente de muitos estudiosos da produção e do consumo da chamada cultra pop, este pequisador não os vê como vítimas passivas de uma ideologia alienante, mas, sim, sujeitos ativos em sua recepção desses 10 Renegate Slash Militia. 11 It allows women to construct narratives that subvert patriarchy by reappropriating those prototypical hero characters who usually reproduce women's position of social disempowerment. Whether these narratives actually can change the material conditions of women's lives, the fact remains that groups like the RSM are writing out a story that is radically different from standard romance traditions, and they are having a wonderful time in the process. BLACKWELL-SYNERGY, Blackwell-Synergy. Disponível em: . Acesso em: 16 ago 2006. 12 SALMON, Catherine; SYMONS, Donald. Warrior Lovers – erotic fiction, evolution and female sexuality. New Haven, USA: Yale University Press, 2003, p. 80. 13 […] overcomes obstacles to identify, win the heart of, and marry the one man who is right for her. Ibidem, p. 82. 96 produtos, que questionam a crença de uma indústria que emana poder sobre suas vidas. Thomas McLaughlin argumenta que esse questionamento e o debate realizado entre os paticipantes ativamente envolvidos em uma comunidade atuante, como os fandons de fanfiction, sejam eles agregados em torno da temática slash ou não, produzem um tipo de teoria vernacular, saudável e empoderadora, que inspira material para as teorizações de cunho acadêmico que, no entanto, não podem dela se abster14. Naturalmente a descoberta da existência do slash, seja pela comunidade acadêmica, seja pela indústria que produz os originais utilizados como materiais de releitura, produziu e ainda produz um certo choque, um desconforto a princípio e, em certos casos, uma rejeição pura e simples que pode se transformar em militância, como no caso de um grupo religioso que se encontra no diretório de grupos do Yahoo junto aos demais grupos de fãs de slash. No caso desse grupo, no entanto, ao ler o disclaimer, descobrimos que, na verdade, se trata de um apelo que objetiva “salvar” os jovens de uma prática que incentiva, segundo suas palavras, a pedofilia15. O autor de ficção-cinetífica David Gerrold, por exemplo, co-autor de episódios de Star Trek, não teve a mesma elegância que seu colega Gene Roddenberry e transpareceu sua revolta ante a descoberta da existência do slash. Este autor lançou, em 1973, um livro nãoficção sobre Star Trek, intitulado The world of Star Trek (O mundo de Star Trek) no qual manifestou seu repúdio à prática. Podemos perceber, neste trecho reproduzido de seu livro e postado em um site sobre a história das fanfictions, o quanto o exercício do prazer de alguns pode ser ofensivo a outros, mesmo em se tratando de universos de fantasia: 14 MCLAUGHLIN, Thomas. Street Smarts and critical theory: listening to the vernacular. USA: University of Wisconsin Press, 1996. 15 GROUPS YAHOO. Anti Slash. Disponível em: . Acesso em: 03 out. 2009. 97 Um fenômeno igualmente perturbador se desenvolveu entre um grupo de fãs de Star Trek, mulheres. Para elas, Star Trek não é sobre a Enterprise ou sua missão de cinco anos, ou a nobre visão da humanidade entre as estrelas - a série trata especificamente da relação entre Kirk e Spock. Mais especificamente, essas mulheres se entretêm escrevendo histórias nas quais Kirk e Spock são amantes homosexuais. [Ele colocou uma nota de rodapé onde se lê: “Eu não estou inventando isso. Sério.”] Kirk?!! Spock?!! As histórias são coletadas e circuladas em fanzines mimeografadas. Mais de um fã insuspeito de Star Trek já se deparou, desavisadamente, com essas fanzines em alguma convenção. O resultado é geralmente uma expressão de espanto e a pergunta, “É disso que se trata Star Trek?” (Mais do que definitivamente isto é do que o fandom de Star Trek realmente não se trata, mas mais de um prospectivo fã jovem foi proibido de participar de convenções ou de ler Trek-zines porque seus pais viram esse tipo de material.) A rede de K/S fãs – como elas mesmas se chamam – é pequena, mas muito ativa. Algumas de suas histórias são muito explícitas. E algumas das artwork que acompanham as histórias... bom, deixa pra lá. Essas mulheres usam cenas dos eposódios e especificamente dos filmes de Star Trek para justificar sua crença de que essa é a mensagem secreta de Star Trek... . Embora as senhoras K/S nunca tenham se manifestado muito a ponto de serem um problema, a projeção de suas próprias fantasias sexuais sobre Star Trek por vezes tem sido irritante para aqueles que na verdade tem de produzir a série. Chegou-se ao ponto de que Gene Roddenberry, em seu romance sobre Star Trek I, teve de reconhecer a não solicitada invasão do universo que ele havia criado, ao incluir uma nota de rodapé [...] explicando que Kirk e Spock eram “apenas bons amigos.” (Isso nem sequer desacelerou a produção das senhoras K/S.) Uma fã de Star Trek de longa data resumiu seus sentimentos sobre o fenômeno K/S da seguinte maneira: “Eu realmente não me importo com as histórias. Algumas delas são inclusive bem escritas. O que me incomoda é o sadomasoquismo presente nelas. Muitas histórias envolvem surras e estupros – às vezes até mesmo entre Kirk e Spock. Só acho difícil de acreditar que este seja um retrato acurado do comportamento dos dois melhores oficiais da Starfleet.” Ainda mais diretos são os comentários de um gay fã de Star Trek: “As histórias K/S que eu vi são ofensivas. É a ideia de uma mulher sobre como são os homens gays e não tem base nenhuma. Além disso, eu gosto de Kirk e Spock do jeito que eles são.” O que qualquer pessoa quiser acreditar na privacidade de sua própria cabeça, é claro, é de sua própria conta. É quando você começa a mexer com os universos de outras pessoas que você tem de seguir as regras do criador local. Se não por outra razão, pelo menos por boas maneiras16. 16 An equally disturbing phenomenon has developed among a group of female Star Trek fans. To them, Star Trek is not about the Enterprise or its five-year mission, or the noble vision of humanity among the stars—it is specifically about the relationship between Kirk and Spock. More specifically, these women entertain themselves by writing stories in which Kirk and Spock are homosexual lovers. [He footnotes this with "I am not making this up. Honest."] Kirk?!! And Spock?!! The stories are collected and circulated in mimeographed fanzines. More than one unsuspecting Star Trek fan has stumbled unwarily into these zines at some convention or other. The result is usually a started expression and the question, 'Is this what Star Trek is really about?' (It is most definitely not what Star Trek fandom is really about, but more than one young would-be fan has been prohibited from attending Trek-cons or reading Trek-zines because his/her parents have seen this material. The network of K/S fans -- as they call themselves -- is small, but very active. Some of their stories are very explicit. And some of the artwork accompanying—well, never mind. These women use scenes from the episodes and specifically from the Star Trek movies to justify their belief that this is the secret message of Star Trek . . . . While the K/S ladies have never been vocal enough to be a problem, their projection of their own sexual fantasies onto Star Trek has at times been a nuisance for those who actually have to produce the show. Eventually, Gene Roddenberry, in his novelization of Star Trek I, had to acknowledge their unwelcome invasion of the universe he had created by including a footnote . . . explaining that Kirk and Spock were "just good friends." (This did not even slow the K/S ladies down.) 98 Além de transparecer estar pessoalmente ultrajado – possivelmente por não serem estes os comportamentos que ele considera aceitáveis, nem de seus heróis interestelares, nem de parte das mulheres – o autor não deixa dúvida sobre os limites que ele acredita serem apropriados para a interpretação ativa dos fãs. Infelizmente, para ele, os fãs não estão interessados em pedir licença para exercerem suas interpretações e as compartilharem com outros fãs, e frequentemente rompem com o comportamento estabelecido como sendo o “correto” de parte dos detentores dos direitos autorais. O pesquisador Roger Chartier, discorrendo sobre o que ele denominou de “leituras selvagens”, ou seja, aquelas legitimadas apenas pela curiosidade desinibida do leitor, sem a sanção de qualquer tipo de indústria ou academia, afirmou que “por sua complexidade, sua imprevisibilidade, pelos caminhos frequentemente encobertos que tomam, as práticas de leitura emanciparam-se frente às ordens e normas – assim como o fizeram as práticas sexuais”17. A agressividade de David Gerrold não passou despercebida pelos fãs que a ela reagiram indignados, embora tenha havido e ainda hoje existam os que fazem eco a sua postura. O autor do post que traduzimos afirmou: Com aqueles comentários Gerrolds desencadeou uma tempestade sobre sua cabeça. Muitos fãs (inclusive eu) trocaram cartas com ele. Em suas cartas de resposta ele declarou que “...aqueles que escrevem esses tipos de histórias vão achar cada vez mais difícil vendê-las” e “a disseminação ativa da interpretação K/S de Star Trek é algo que a Paramount provavelmente veria como prejudicial a sua propriedade – e o estúdio irá agir para proteger sua propriedade18. Apesar de controverso e das ações praticadas pelos autores e outros detentores dos direitos dos originais, desde os televisivos aos em formato códex, passando por peças One long-time Star Trek fan summed up her feelings about the K/S phenomenon this way: "I really don't mind the stories. Some of them are even quite well written. What does bother me though is the sado-masochism in them. Too many of the stories involve beating and rapes -- sometimes even between Kirk and Spock. I just find it difficult to believe that this is an accurate portrayal of the behavior of two of Starfleet's finest officers. Even more candid are the comments of a gay male Star Trek fan: "The K/S stories I've seen are offensive. It's a woman's idea of what gay men are like, and it's way off base. Besides, I like Kirk and Spock the way they are." What anyone wants to believe in the privacy of his or her own head, of course, is his or her own business. It's when you start messing around in other people's universes that you have to follow the rules of the local creator. If nothing else, it's good manners. FANLORE, Slash, 2009. 17 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. 2 ed. São Paulo: Unesp, 1999, p. 13. 18 With those comments, Gerrold unleashed a storm about his head. Many fans (including me) exchanged letters with him. His response letters declared that "... those who write these kinds of stories will find it increasingly difficult to sell them" and "the active dissemination of the K/S interpretation of Star Trek is something that Paramount would very probably view as damaging to their property—and the studio will act to protect their property”. FANLORE, Slash, 2009. 99 musicais e mangás, o slash apenas cresceu desde seu surgimento, como pudemos comprovar na introdução ao capítulo dois, apesar de várias tentativas legais de parte dos estúdios e de alguns escritores no sentido de impedirem sua disseminação. Quanto ao debate acerca do que exatamente trata o slash, também nos sugere que já ultrapassou a barreira da definição única. Há histórias com protagonistas heterossexuais tomados de empréstimos dos originais, envolvidos em uma enorme diversidade de relacionamentos homossexuais (talvez essa seja a premissa), dos mais pueris aos mais agresivos, sejam protagonistas homens ou mulheres, pertencentes a uma mesma família, casal ou em trio (ménage a trois) adolescentes ou maduros e mesmo animais mágicos já entraram nessas nada ortodoxas fantasias “literossexuais”. O número de possibilidades é imenso e aos fãs cabe encontrar “sua turma”, outros fãs que dividem os mesmos gostos. Como já mencionamos, na presente pesquisa nos detemos na existência de fanfics slash em cuja caracterização há uma tendência romântica, por acreditarmos serem estas mais comumente encontradas no fandom potteriano brasileiro, o que nos leva a apresentar teorizações que nos aproximem de seu conteúdo. Da mesma forma que os outros autores, em seus primeiros trabalhos, Jenkins também observou que, no slash, a caracterização dos personagens não é momentaneamente suspensa durante as cenas de sexo – o que seria uma referência à pornografia tradicional – mas, ao contrário, muitas vezes esses são os momentos utilizados pelas autoras para enfatizar determinados traços ou fazer revelações sobre as personalidades dos protagonistas, distanciando, novamente, essas histórias daquelas destinadas ao público masculino, mais centradas na penetração e ejaculação, ocasião em que ocorre a suspensão da trama. Diz o autor: O slash [...] apresenta muitos elementos progressistas: seu desenvolvimento de uma forma mais igualitária de relações românticas e eróticas, sua transcendência de categorias rigidamente definidas de gênero e de identidade sexual, sua crítica dos aspectos mais repressivos da masculinidade tradicional.19 (Tradução nossa) A julgar pelas discussões realizadas em fandons de língua inglesa, disponibilizadas pelo próprio Jenkins em seu website20, é comum que as autoras e leitoras de slash se 19 Slash […] has many progressive elements: its development of more egalitarian forms of romantic and erotic relationships, its transcendence of rigidly defined categories of gender and sexual identity, its critique of the more repressive aspects of traditional masculinity. JENKINS, Textual Poachers, p. 219. 20 MIT, Massachusetts Institute of Technology. Web MIT. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2006. 100 dediquem a debater entre si as razões que as motivam a se envolverem com esse gênero de fanfiction. Uma escritora de slash que atende pelo pen-name de Cat Anestopoulo, ao teorizar sobre os motivos que levam mulheres “normais” – como ela mesma enfatiza – a escrever sobre relações homossexuais masculinas, propõe duas razões pelas quais as autoras tendem a não se identificar com a heroína dos seriados de TV que servem de base para a escrita dessas histórias, preferindo identificar-se com o herói e procurando vivenciar as emoções a partir do ponto de vista dele. A primeira seria a de que uma mulher, tendo internalizado os valores da nossa cultura, poderia ter introjetado um sentimento de desvalorização do feminino, passando a perceber a heroína como um objeto indigno de identificação. A segunda razão seria a representação de personagens femininas poderosas como sendo vilãs, ou, então, no papel de sedutoras, que conseguem seu status de força por meio do uso de seus atributos físicos. Resta, assim, a identificação com o herói da história, através do qual, as escritoras e as leitoras de slash vivenciariam as aventuras da série. Declara ela: Se você não quer que o sexo e o romance estejam ausentes de suas fantasias e você se identifica com o herói masculino, vendo a aventura do seu ponto de vista, quem diabos você vai utilizar como interesse romântico? Não o próprio, porque uma vez que você está vivendo a aventura através dele, a ideia é fazer com que ele sinta os sentimentos de sexo e romance e então se identificar com eles. Então ele tem que ter um relacionamento com outra pessoa, com alguém que produza reações emocionais nele que você considere interessantes. E é improvável que essa pessoa seja a heroína que dá gritinhos (porque, se você gostasse dela, já teria se identificado com ela e “se juntado” a ela, de saída)21 (Tradução nossa). Essa autora parece externar uma preocupação com o papel que é tradicionalmente reservado às mulheres como personagens dos textos que motivam a escrita de fanfictions, percebendo o slash como uma tentativa, por parte das leitoras daqueles textos, de vivenciar aventura e romance através dos olhos de um personagem com o qual elas sintam orgulho de se identificar. Para Jenkins, as mulheres estariam usando um paradoxo oferecido pelo ciberespaço – o da manutenção da privacidade da identidade pessoal conjugado ao exercício da exposição em um fórum público – para explorar sentimentos e ideias de uma forma que 21 If you do not want sex or romance to be absent from your daydreamings and you are identifying with the male hero, seeing the adventure from his viewpoint, who the heck are you going to use as a romantic interest? Not him, because since you are living the adventure through him, the point is to make him feel the feelings of sex and romance, and then identify with it. So he has to have a relationship with someone other than himself, with someone who produces emotional reactions in him that you find interesting. And that person is unlikely to be the screaming ninny (because, if you liked her, you would have identified with her and 'tinkered' with her to start with). ANESTOPOULO, Cat. Darling Zine, TNU 3. August 1990. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2006. 101 antes não lhes era permitida. O autor sugere que a proteção e a liberdade, desfrutadas ao mesmo tempo na internet, possibilitam a essas escritoras desafiar tabus sociais que inibiram “a exploração e a expressão de si mesmas no passado, e [...] as implicações desse fenômeno podem nos informar acerca da nossa compreensão dos usos sociais, psicológicos e literários do ciberespaço”22. Ao mesmo tempo, é preciso atentar para o fato de que não é apenas no subgênero slash que a presença feminina é predominante, mas em todo o fenômeno da escrita e leitura de fanfictions, inclusive no Brasil. Como já referimos, no fandom potteriano brasileiro pode ser constatada uma tendência de dirigir os enredos das histórias para a resolução do relacionamento de um shipper, seja através da escrita de um romance, de uma aventura, de uma comédia ou de slash. Existe a possibilidade de que tal situação esteja relacionada à história da leitora brasileira, para a qual foram criadas obras com o intuito de educá-la para a manutenção do sistema social burguês que se estabelecia, a duras penas, no país. Como a mentalidade burguesa implica o exercício da arte com fins específicos, da arte como instrumento pedagógico, no caso das mulheres era mister que sua educação tivesse o objetivo de prepará-las para o exercício de sua função social. Na época do surgimento da leitora no Brasil – a mulher branca, de classe média, com acesso ao estudo, ainda que reduzido – essa função resumia-se ao cuidado com a casa e os filhos e filhas, e a educação desses no sentido da manutenção da estrutura daquela sociedade, em que o exercício da sexualidade feminina ficava circunscrito ao casamento, o que asseguraria o conhecimento da origem da descendência por ela gerada. Dessa forma, há uma subversão do modelo descrito anteriormente e talvez seja possível o estabelecimento de uma relação entre os hábitos de leitura das autoras de fan fiction do tipo slash e sua produção textual. As autoras e leitoras que disponibilizam de seu tempo de lazer para se dedicarem à escrita e à leitura de fanfictions sobre seu shipper preferido sob a forma de slash, e à participação em comunidades onde suas preferências são aceitas e seu trabalho incentivado, podem estar, através dessas atividades, assumindo um papel ativo de criação de espaços de transgressão na apresentação de sua sexualidade, através da experiência literária. Protegidas pelo anonimato da internet, elas poderiam estar experimentando uma recriação dos papéis normalmente destinados às personagens femininas nos romances e, por consequência, à mulher na sociedade, ao mesmo tempo em que reconfigurariam a apresentação do estereótipo erótico masculino às suas necessidades. 22 (…) self exploration and self expression in the past, and […] the implications of this phenomenon can inform our understanding of the social, psychological, and literary uses of cyberspace. (MIT, Web MIT, 2006). 102 O texto base para as observações a seguir é um conhecido estudo realizado pelo Dr. Donald Symons e por Catherine Salmon, no qual eles procuram compreender as motivações que levam as mulheres ao envolvimento com a fan fiction slash. Esse estudo, aparentemente controverso, parte do ponto de vista evolucionista e busca compreender como, darwinianamente, seria possível explicar as razões pelas quais esse tipo de ficção poderia ser atraente. É, na verdade, possivelmente a mais completa explicação sobre as razões subjacentes ao interesse pelo slash, ainda que não seja bem aceito por todos os envolvidos com o tema. Donald Symons é professor emérito da cadeira de Antropologia, no Departamento de Antropologia, da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. Embora, como antropólogo, ele tivesse experiência como pesquisador da evolução da sexualidade humana, Symons não esconde, na introdução de seu livro, sua perplexidade quando de seu primeiro contato com a existência da fan fiction do subgênero slash. Sua perplexidade não nos é estranha e a pergunta por ele levantada acerca das razões pelas quais uma mulher quereria ler ou escrever esse tipo de ficção, é precisamente a mesma que nos levou a desenvolver a presente pesquisa, além da necessidade de apresentação, a nosso ver, da profícua existência desses escritos em língua portuguesa do Brasil, a forma como eles podem ser encontrados, e como se dá a dinâmica de um fandom em torno deles organizado. Reiteramos que, embora atualmente homens e mulheres sejam encontrados envolvidos na leitura e criação do slash, nossa pesquisa se centra na massiva presença feminina em slash potteriano escrito em língua portuguesa do Brasil. Embora seja praticamente impossível determinar qual a orientação sexual das envolvidas no fandom do qual tomamos parte, o Potter Slash Fics e a troca espontânea de e-mails entre elas revela um perfil de mulheres adultas, pertencentes às classes médias, possivelmente heterossexuais. Ao se referir ao slash como um tipo de “romance escrito por mulheres, para mulheres no qual ambos os amantes são homens”23 expropriados de material midiático previamente existente, observamos que o pesquisador se referia ao grupo de autoras e leitoras do tipo de slash que nos parece ser o mais comumente encontrado no fandom potteriano brasileiro. O espanto do autor fê-lo concluir que precisava rever seus conceitos, de natureza darwiniana, acerca da psicologia do acasalamento de homens e mulheres. Ao entrar em contato com as primeiras fanfictions slash Symons afirma que, embora não as tenha apreciado do ponto de vista literário – ainda que tenha reconhecido que várias eram muito bem escritas – percebeu que havia algum elemento que lhe era familiar naquelas 23 SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 2. 103 histórias que o desafiavam do ponto de vista da psicologia do acasalamento feminino. “Na verdade, o slash me pareceu estranhamente familiar e então me dei conta de que aquelas narrativas eram, em muitos aspectos, semelhantes aos romances comerciais que eu havia lido alguns anos antes”24 (Tradução nossa). É particularmente divertida a afirmação do autor de que sua reação inicial ao slash remeteu-o a uma possível comparação com as reações das mulheres que entram em contato com vídeos pornôs pela primeira vez, qual seja, a de um completo estranhamento acerca do que é considerado excitante pelo sexo oposto. Declara o autor: “Conhecer o erotismo pensado para a excitação do sexo oposto equivale a espiar o abismo psicológico que separa os sexos e, o que é pior, a confrontar suas próprias deficiências no que se refere ao ideal de fantasia sexual do outro”25 (Tradução nossa). Embora apresentemos nossas reservas a esta generalização, pois acreditamos que tal estranhamento se deva mais a questões culturais do que biológicas – como a já debatida premissa de que as mulheres não privilegiam o olhar como fonte de excitação sexual – compreendemos a admiração do autor acerca das diferenças entre o erotismo masculino e o feminino do ponto de vista do estudo da evolução da sexualidade humana. Ainda assim, não pudemos deixar de nos perguntar qual a ressonância em relação à realidade brasileira que encontraríamos face a sua afirmação de que raros seriam os gays e os homens que encontrariam algum tipo de estímulo sexual através da leitura das fanfictions slash apresentadas pela sua parceira em pesquisa, Catherine Salmon, ela mesma uma autora e leitora desse subgênero. Salmon teria apresentado, por sugestão de Symons, algumas fanfictions slash para amigos gays e eles teriam rido discretamente do tipo de texto por ela apreciado. Em contrapartida, eles lhe teriam apresentado o tipo de material de leitura considerado excitante sexualmente para homens gays, nos quais a pesquisadora registrara a ausência de desenvolvimento de personagem e de enredo. Como não há, no estudo por eles publicado, nenhum exemplo de análise textual que pudesse servir como comparativo a alguma fan fiction slash escrita em língua portuguesa que possua o mesmo cânon como base, permanece em nós a dúvida acerca de quão excitante essas narrativas poderiam ser para diferentes gêneros e orientações sexuais. Talvez possamos atribuir aos quase dez anos passados desde a realização desse estudo a diferença que encontramos entre a realidade descrita pelos autores – a de que as narrativas slash 24 In fact, slash seemed oddly familiar, and it dawned on me that these narratives were in many ways like the mainstream romances that I had read just a few years earlier. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 3. 25 To encounter erotica designed to appeal to the other sex is to gaze into the psychological abyss that separates the sexes and, what‘s worse, to confront one‘s own shortcomings via-à-vis the other sex‘s fantasy ideal. Ibidem, p. 4. 104 dificilmente produziriam excitação sexual em outros gêneros e orientações sexuais que não os de suas autoras – e a que acreditamos ter encontrado na leitura de textos brasileiros de slash no fandom Harry Potter, os quais, em virtude de sua pormenorização, explicitude e ousadia, nos levam a questionar aquela premissa. Não sabemos, por exemplo, se fanfictions slash do tipo PWP, anteriormente mencionadas, não poderiam ser de maior interesse do gênero masculino. No entanto, cientes de que esse questionamento demandaria uma outra pesquisa na qual fossem efetuadas entrevistas com sujeitos expostos a tais textos, nos contentamos em registrar aqui a possibilidade da realização de tal estudo, um dos muitos a serem conduzidos dentro de um assunto tão vasto, intrigante e polêmico como a fan fiction slash. A resposta à pergunta que os pesquisadores formularam não é, de modo algum, fácil de obter: por que o slash existe? Seu objetivo era o de encontrar qual a fonte do apelo tão especial que esse subgênero exerce sobre suas fãs. Partindo do pressuposto de que a atração de um grupo de mulheres pelo slash – incluindo aí a própria pesquisadora – seria alguma espécie de desvio psicossexual que as diferenciaria das leitoras dos romances cor-de-rosa tradicionais, os autores procuraram comprovar ou refutar tal hipótese. Os autores partem da teoria darwiniana que tem por base o processo compreendido e denominado por Charles Darwin de seleção natural. No entanto, naturalmente a leitura e a escrita de fanfictions slash não são relacionadas com a promoção da reprodução da espécie humana e com a continuidade dos genes de qualquer grupo pertencente a nossa espécie. Dessa forma, a princípio, utilizar-se da teoria darwiniana para compreender os porquês da existência do slash parece uma tarefa fadada ao fracasso, ou, no mínimo, tão ilógica quanto realizar uma análise newtoniana do movimento hip-hop, como bem colocaram os autores. Contudo, em virtude da existência de um número significativo de mulheres que se interessam por esse tipo de histórias, Salmon e Symons compreendem que o gênero contém informações sobre as adaptações realizadas pela psique feminina em seu processo evolutivo. Assim, os pesquisadores estabeleceram como meta identificar as características essenciais do slash e compará-las com aquelas do produto ficcional erótico mais bem sucedido do mercado em termos de consumo feminino – os chamados romances cor-de-rosa –, para subsequentemente contrastar a ficção erótica dirigida ao público feminino com aquela dirigida ao público masculino – notadamente o vídeo pornô – com o objetivo de iluminar a psicologia feminina evoluída em termos de acasalamento. Embora seja nosso entendimento de que não faz parte das atribuições da presente pesquisa realizar uma retomada da teoria darwiniana sobre a seleção das espécies, decidimos apresentar minimamente o entendimento sobre a psicologia do acasalamento humano na qual 105 se baseiam Symons e Salmon, por compreendermos ser este de fundamental importância em seu entendimento acerca da ficção erótica destinada ao público masculino e feminino e, fundamentalmente, em relação à existência do slash. Segundo os pesquisadores, a escolha do parceiro para o acasalamento sempre foi uma fonte de preocupação para nossos ancestrais. Poder-se-ia dizer que aos prospectivos parceiros era atribuído um valor, não explícito, é claro, em termos de seu potencial de reprodução dos indivíduos que com ele se acasalassem, sendo esse valor relativo à idade – fundamentalmente ao ciclo reprodutivo – e às habilidades – como a caça –, dentre outros. A seleção natural teria, dessa forma, produzido adaptações psicológicas que nos possibilitariam detectar e utilizar informações acerca do valor dos parceiros em potencial, com base na sua observação. Embora não creiamos que tal processo se passe em nível consciente nos dias que correm e mesmo dando credibilidade a tal informação, consideramos particularmente ousada a afirmação de que a atração entre os sexos não é culturalmente construída, mas sim calcada no valor reprodutivo, uma vez que este não é mais um determinante ao qual a espécie humana se submeta sem racionalizar acerca dele. Os autores, no entanto, refutam tal ideia: [...] a maior parte das pessoas acredita que entre os humanos – e apenas entre os humanos – os determinantes da atração são arbitrários e caprichosos ao invés de pistas confiáveis do valor do parceiro. Isso é derivado de uma compreensão mais geral de que entre os humanos a percepção de atratividade é completamente ou largamente „culturalmente construída‟ – o que simplesmente significa que os humanos adquirem seus padrões de atratividade imitando aqueles de outras pessoas. Nós argumentamos que a probabilidade dessa compreensão comum ser correta é essencialmente zero26 (Tradução nossa). Dada a característica competitiva da escolha de parceiro, ou seja, o grau de sucesso é atribuído quando em comparação com os indivíduos da mesma espécie, a psicologia do acasalamento humano teria evoluído de forma bastante refinada, de forma a distinguir traços menos evidentes do que os referentes à idade e à habilidade de caça. Mecanismos de percepção de atratividade que levassem a escolhas com base em caprichos pessoais ou idiossincrasias teriam sido rapidamente eliminados pela seleção natural e não poderiam, dessa 26 Nevertheless, most people assume that among humans – and human alone – the determinants of attractiveness are arbitrary or capricious rather than reliable cues of mate value. This follows from the more general assumption that among humans the perception of attractiveness is completely or largely ‗culturally constructed‘ – which simply means that humans acquire their standards of attractiveness by imitating those of the other people. We will argue that the probability of this common assumption being correct is essentially zero. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 32. 106 forma, ter persistido. Apenas aqueles testados pelo decurso do tempo, como a habilidade de prover para a prole, subsistiram, sendo mais determinantes para a escolha do parceiro do que, digamos, cor de cabelo. Nesse ponto, embora reconheçamos que essa não é nossa área de expertise, não podemos deixar de questionar a possibilidade de os autores não estarem levando em conta a importância das características culturalmente valorizadas em diferentes grupos sociais na atualidade quando da escolha do parceiro para acasalamento. Tais escolhas seriam, ao nosso ver, também impulsionadas pela pressão social de grupos sociais nos quais os indivíduos estejam inseridos e, para os quais, as características mais valorizadas não seriam, necessariamente, as mais desejáveis para a reprodução. Ainda assim, Symons e Salmon afirmam que as percepções dos outros indivíduos sobre o valor de um determinado sujeito desempenham um papel bastante limitado na percepção de atratividade. Eles apresentam a seguinte ideia a título de exemplificação das limitações da cultura e da percepção de terceiros no que concerne às escolhas amorosas, ou seja, de acasalamento: Por exemplo, as mulheres podem achar que um estranho do sexo masculino é mais atraente se ele tiver uma mulher bonita ao seu lado do que se ele estiver sozinho. E quanto mais bonita for a mulher, mais atraente ele pode parecer. A lógica adaptacionista que subjaz a essa hipótese é a seguinte: o simples fato de que um homem foi escolhido por uma mulher bonita fornece informação de baixo custo sobre aspectos não observáveis de seu valor como parceiro e quanto mais bonita for a mulher que fez a escolha, maior são as chances de seu valor aumentar. Em outras palavras, as mulheres observadoras podem adquirir informações sobre o valor de um homem como parceiro através de uma espécie de parasitismo informacional27 (Tradução nossa). Ainda assim, de acordo com os autores, os seres humanos teriam desenvolvido mecanismos psicológicos capazes de detectar e ler pistas acerca do valor de acasalamento de um parceiro, independentemente das preferências de outras pessoas e esses mecanismos seriam altamente resistentes a modificações culturais. Para melhor compreendermos essa teoria é preciso que atentemos para os diferentes tipos de problemas adaptativos enfrentados pelo sexo masculino e pelo sexo feminino, uma 27 For example, women may perceive a male stranger as more attractive if he has a pretty woman on his arm than if he is alone; and the prettier the woman he is with the more attractive he may appear to be. The adaptationist logic underlying this hypothesis is as follows: the very fact that a man has been chosen by a pretty woman provides low-cost information about non-observable aspects of his mate value, and the prettier the woman who did the choosing the higher his mate value is likely to be. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 36. 107 vez que, em termos de acasalamento e reprodução, as experiências biológicas de ambos os sexos diferem profundamente. Em virtude disso, a evolução da psicologia cuja leitura de mundo, ou pelo menos de parceiro, desse conta dos problemas enfrentados foi, naturalmente, bastante diversa no caso feminino daquela do masculino. Portanto, pelo menos do ponto de vista darwiniano, “a probabilidade de que a psique dos humanos macho e fêmea seja essencialmente idêntica é tão próxima do zero a ponto de ser indistinguível deste”28. A questão da reprodução teria sido o fator determinante em termos de problema a ser enfrentado através das necessárias adaptações da psique e do comportamento com o objetivo de garantir a preservação da espécie. A garantia da identidade da paternidade seria, portanto, absolutamente fundamental para um caçador que decidisse sustentar sua prole. Alimentar a prole de outro homem seria altamente prejudicial do ponto de vista adaptativo. Para as mulheres, no entanto, a questão da dúvida acerca da identidade da mãe é inexistente e sua relação com a prole, profundamente diferente, como explicam Symons e Salmon: Os homens e as mulheres ancestrais também diferiam dramaticamente no investimento minimamente possível que eles pudessem fazer em sua prole para que essa tivesse a chance de sobreviver até a idade reprodutiva. Para uma mulher ancestral, o investimento minimamente possível consistia de um óvulo, nove meses de gestação, os perigos do parto, vários anos de amamentação e o constante embora decrescente cuidado e fornecimento de alimentação até que a criança estivesse em idade suficiente para sobreviver sozinha. Como os homens ancestrais investiam substancialmente na prole tida com suas esposas, seu investimento parental típico podia ser considerado muito alto (para padrões mamíferos). No entanto, seu investimento minimamente possível consistia meramente no conteúdo de uma única ejaculação e alguns minutos de seu tempo. Em outras palavras, os machos ancestrais podiam reproduzir praticamente sem custo nenhum se eles engravidassem uma mulher com a qual eles não estivessem casados e fossem pais de uma criança na qual eles não precisavam investir e uma reprodução de custo tão baixo seria considerada muito boa em termos de adaptação. As mulheres ancestrais, por outro lado, nunca encontraram uma oportunidade para reproduzir a baixo custo: o investimento parental feminino mínimo era enorme. Dessa forma a seleção [natural] teria favorecido nos homens, mas não nas mulheres, adaptações psicológicas que funcionassem na promoção da busca por oportunidades de reprodução a baixo custo29 (Tradução nossa). 28 ―[...] the probability that the human male and female psychologies are essentially identical is so close to zero as to be indistinguishable from it.” SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 38. 29 Ancestral men and women also differed dramatically in the minimum possible investments they could make in an offspring if that offspring was to have a chance of surviving to reproductive age. For an ancestral female, the minimum possible investment consisted of an egg cell, nine months of gestation, the perils of childbirth, several years nursing, and continuing but diminishing care and provisioning after weaning until the child was old enough to survive on its own. As ancestral males invested substantially in their wives‘ offspring, their typical parental investments were very high (by mammalian standards); nevertheless, their minimum possible investment consisted merely of the contents of a single ejaculate and a few minutes of time. In other words, ancestral males could have reproduced at almost no cost if they impregnated a woman to whom they were not married and sired a child in whom they did not invest, and such low-cost reproduction would have been highly adaptive. Ancestral females, on the other hand, never encountered an opportunity for low-cost reproduction: the 108 Isso não significa que as mulheres ancestrais não tivessem interesse em relações outras que as do seu casamento, mas que os benefícios da copulação não marital teriam de estar relacionados a conseguir algum benefício extra, como proteção e bens materiais, mas não a “aquisição” de mais crianças. Dadas essas diferenças, os autores consideram plausível que a cópula aleatória com estranhos era, em termos adaptativos, desastrosa para as mulheres e, por isso, seria razoável esperar que os homens e as mulheres diferissem profundamente em sua motivação para fazer sexo com estranhos. Parece ser sua crença que esse estado de coisas assim permanece, mesmo nos dias em que esta tese é escrita. A relação sexual expõe os humanos a riscos que diferem dramaticamente entre homens e mulheres e seriam esses riscos os responsáveis pelas diferenças comportamentais na abordagem do encontro sexual, não o desejo em si. Tal afirmação nos leva a questionar se, em virtude das intervenções tecnológicas e culturais que vivemos, não seria possível perceber uma nova abordagem das mulheres em relação a seus desejos, uma nova liberdade no desejar e no fantasiar, elemento primordial para a realização do slash, ainda que essa fantasia – como a de ver, em sua imaginação, dois homens atraentes fazendo sexo – não passe para o plano da realidade, permanecendo no lugar das fantasias, que é o mesmo lugar do brincar na psique humana. Dentre os exemplos elencados por Symons e Salmon para comprovar a diferença na abordagem de homens e mulheres em relação ao sexo – e, portanto, a diferença existente na ficção erótica produzida por cada gênero – está um estudo realizado por Elaine Hatfield30 e Russel Clark no campus da Florida State University pela primeira vez em 1978 e, novamente, em 1982, que consistia basicamente em colher as reações de jovens do sexo masculino e feminino quando convidados para um encontro possivelmente amoroso ou para fazer sexo. Cinco mulheres e cinco homens, todos estudantes universitários com cerca de vinte e dois anos de idade, vestidos de forma casual, aproximavam-se de pessoas do sexo oposto que se encontrassem sozinhas em alguma parte dos cinco campi da referida universidade. Em cada um dos experimentos, 48 homens e 48 mulheres foram abordados, totalizando 96 indivíduos de cada sexo. Todas as abordagens ocorreram em dias de semana, com tempo bom e em um horário que diferisse daquele das aulas regulares. A escolha da pessoa a ser abordada ficou minimum possible female parental investment was very large. Selection would therefore have favored in men, but not in women, psychological adaptations that function to promote the pursuit of low-cost reproductive opportunities. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 39. 30 Os resultados desse estudo estão disponíveis online, em um artigo intitulado Gender Differences in receptivity to sexual offers. CLARK III, Russel D; HATFIELD, Elaine. Gender Differences ins Receptivity to Sexual Offers. Journal of Psychology & Human Sexuality. v 2, n. 1, 1989. Disponível em: . Acesso em 14 set. 2010. 109 inteiramente a cargo da opinião do participante da pesquisa no que tangesse a sua atratividade sexual e as mulheres pontuaram seus eleitos em 7.3 nesse quesito, enquanto os homens pontuaram suas eleitas em 7.7, uma diferença de valores não muito significativa, numa escala de zero a nove. O participante da pesquisa, ao abordar o indivíduo do sexo oposto escolhido como atraente, dizia algo na seguinte linha: “Tenho reparado em você pelo campus. Acho você muito atraente”. A seguir, escolhia um dos seguintes convites para propor: a) Você quer sair comigo hoje à noite?; b) Você quer vir ao meu apartamento hoje à noite?; e c) Você quer ir para a cama comigo hoje à noite?31. Os pesquisadores se certificaram que durante a realização dos dois experimentos cada proposta foi apresentada 32 vezes. Os resultados demonstram que ao serem convidados para sair, tanto homens como mulheres empataram na aceitação do pedido, com um percentual de 50% para cada sexo. Já quando o convite incluía o apartamento do (ou da) proponente, o número de homens que aceitaram o convite cresceu significativamente atingindo os 69%, enquanto que o percentual de mulheres que o aceitaram caiu para apenas 3%. Faz-se evidente que ir ao apartamento de um estranho implica em maiores possibilidades de consumação de uma relação sexual, motivo pelo qual a proposta foi rejeitada pela absoluta maioria das mulheres. Já o convite direto para fazer sexo foi rejeitado por 100% das mulheres abordadas e aceito por – impressionantes, em nossa opinião – 72% dos homens. Parece evidente que um número significativamente maior de homens estaria predisposto a fazer sexo com uma estranha do que a aceitar seu convite para um encontro amoroso. Hatfield e Clark sugerem algumas interpretações possíveis para tais resultados, mas sem a pretensão de que sejam conclusivas. Talvez, afirmam eles, os sociobiologistas estejam corretos em sua crença de que as mulheres desejem mais o amor e o compromisso, em detrimento do prazer sexual espontâneo, acrescentamos nós. Afinal, ao sair para um encontro há a probabilidade de sexo, mas também a probabilidade do surgimento de uma relação amorosa que leve, então, ao ato sexual. As diferentes reações dos jovens abordados com a franca proposta de uma relação sexual também é um importante indicativo de como homens e mulheres se sentem em relação à possibilidade de sexo casual: 31 ―I have been noticing you around campus. I find you to be very attractive.‖ ―Would you go out with me tonight?‖ ―Would you come over to my apartment tonight?‖ ―Would you go to bed with me tonight?‖ CLARK; HATFIELD, Gender Differences ins Receptivity to Sexual Offers, p. 01. 110 Em geral os participantes relataram que os homens se sentiram à vontade frente a este convite. Eles disseram coisas como “Porque esperarmos até de noite?” ou “Não posso hoje à noite, mas amanhã é um bom dia.” Os homens que disseram “não” chegaram mesmo a apresentar desculpas, como “Eu sou casado” ou “Estou saindo com alguém.” Em contraste, a resposta das mulheres às propostas de intimidade por parte dos homens foi de “Você deve estar brincando!” ou “O que é que há de errado com você? Me deixe em paz!”. É claro que a interpretação sociológica – de que as mulheres estão interessadas no amor enquanto os homens estão interessados em sexo – não é a única interpretação possível desses dados. Pode ser, é claro, que ambos homens e mulheres estejam igualmente interessados em sexo, mas que os homens tenham associado a aceitação de um convite para sexo com menos riscos do que as mulheres. Os homens podem ser mais confiantes em sua habilidade de reagir a uma agressão física do que as mulheres são. Ainda, a permanência de duplos padrões de julgamento moral podem ocasionar receio de parte das mulheres em aceitar o convite de um homem”32. Aparentemente, embora atualmente o fardo biológico da reprodução e dos cuidados com a cria esteja muito mais sob o controle da mulher, as experiências evolucionárias inscritas durante séculos em seu código comportamental ainda estão muito presentes quando de suas escolhas sexuais, inclusive porque a violência não é uma questão que se encontra eliminada da pauta das preocupações femininas na atualidade. No que se refere à disponibilidade masculina em fazer sexo com uma estranha, Symons e Salmon argumentam que a ausência de laços é um fator que agrada tanto os homens que eles inclusive estão dispostos a pagar por ele. Daí a longevidade da prostituição. Embora reconheçam a existência de prostituição masculina cujos serviços são pagos pelas mulheres, eles atentam para o fato de que essa é minúscula, se comparada à prostituição feminina a serviço da clientela masculina e atentam para a existência para uma suposta semelhança entre a prostituição a serviço dos homens heterossexuais e aquela a serviço dos homens homossexuais. No cerne do interesse pela prostituição não estariam sentimentos e atitudes misóginas, garantem os pesquisadores, mas, sim, a liberdade de ter acesso ao sexo de forma descomprometida: 32 In general, the female experiments reported that men were at ease with the request. They would say ―Why do we have to wait until tonight?‖ or ―I cannot tonight, but tomorrow would be fine.‖ The men that said ―No‖ even gave apologies, i.e. ―I‘m married‖ or ―I‘m going with someone.‖ In contrast, the women‘s response to the intimate requests from males was ―You‘ve got to be kidding?‖ ou ―What is wrong with you? Leave me alone.‖ Of course, the sociological interpretation – that women are interested in love while men are interested in sex – is not the only possible interpretation of these data. It may be, of course, that both men and women were equally interested in sex, but that men associated fewer risks with accepting a sexual invitation than did women. Men may be more confident of their ability to fight back a physical assault than are women. Also, the remnants of the double standard may make women afraid to accept the man‘s invitation. CLARK; HATFIELD, Gender Differences ins Receptivity to Sexual Offers, p. 02. 111 A prostituição, em resumo, não é uma janela para os sentimentos ou atitudes dos homens em relação às mulheres; é uma janela para a natureza da sexualidade masculina. Quando um homem compra os serviços de uma prostituta, ele não está apenas pagando por sexo, ele geralmente está pagando apenas por sexo. Ou seja, ele está pagando por sexo sem compromisso, obrigação, paquera, namoro, conversa ou mesmo o „pagamento‟ de atenção33. Embora acreditemos que os autores estejam corretos em seu raciocínio, apenas queremos pontuar que a prostituição, além de ser uma janela para a sexualidade masculina, pode também ser uma porta de acesso aos sentimentos e atitudes de indivíduos homens em relação às mulheres, uma vez que ainda é comum a busca de prostitutas para a realização de fantasias sexuais das quais possivelmente o indivíduo se envergonhe ou a parceira de relacionamento se recuse a participar, como também, infelizmente, é comum a agressão às profissionais do sexo. Uma janela não exclui a outra, a nosso ver. A título de exemplificação, Symons e Salomon recorrem a um famoso escândalo ocorrido em Los Angeles no qual uma rede de prostituição de altíssimo luxo foi trazida a público pela polícia e ganhou notoriedade nos noticiários. O motivo é que uma vez exposta a identidade da dona do negócio, ela confessou ter caído nas mãos da polícia um caderninho de uso pessoal seu, no qual constavam os nomes de celebridades e milionários que eram clientes assíduos de suas garotas. Na época muitas pessoas se perguntaram o porquê de homens tão poderosos, bonitos, famosos, pagarem a uma mulher US$ 1.500,00 por sexo, quando poderiam facilmente entrar numa boate de Beverly Hills e sair de lá com uma mulher de seu agrado. A resposta seria de que o homem “não estava pagando à prostituta US$ 1.500,00 pelo sexo per se; ele estava pagando a ela US$ 1.500,00 para que fosse embora depois do sexo”34. E também pelo sigilo, ousamos acrescentar. Afinal, no caso de um homem ser rico e famoso, sexo sigiloso e sem compromisso deve se tornar muito valioso. Mais um motivo para se recorrer a uma profissional. Os principais produtos de ficção erótica disponíveis para o público masculino e para o feminino são, respectivamente, o filme pornô e o chamado romance cor-de-rosa. Ambos 33 Prostitution, in short, is not a window into men‘s feelings about or attitudes towards women; it is a window into the nature of male sexuality. When a man purchases a prostitute‘s services, he is not just paying for sex; usually he is paying just for sex. That is, he is paying for sex without commitment, obligation, wooing, courtship, chatting up or even the ‗payment‘ of attention. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 48. 34 [...] not paying the prostitute $1500 for sex per se; he was paying her $1500 to go away afterwards. Ibidem, p. 49. 112 constituem um mercado multibilionário de alcance global e seu sucesso se deve justamente a sua longevidade, uma vez que o gosto do público que compra essas ficções foi ficando cada vez mais claro à medida em que determinados produtos vendiam e outros não. Essa observação da preferência do consumidor, praticamente imutável, possibilitou a criação de fórmulas que funcionam e, com base nelas, essas indústrias têm se mantido até hoje. O mercado de ficção erótica não é dado a rasgos de criatividade, mas objetiva oferecer ao seu consumidor exatamente aquilo que ele espera. Symons e Salmon nos informam que em 1997 a venda e o aluguel de vídeos pornô passava da casa dos quatro bilhões e abocanhava 25% do total do mercado de vídeos. No entanto, o site Forbes, cuja revista impressa é conhecida referência no mundo dos negócios, questiona números próximos àqueles em um artigo de 2001. Na época afirmava-se que os números da indústria pornográfica alcançavam a casa dos 10 bilhões de dólares, propalados como se a indústria estivesse vivendo sua época de ouro. Contudo, somando vídeos, pay-perview, internet e revistas, a publicação afirma que a receita dessa indústria deve variar entre 2,6 a 3,9 bilhões. Não negamos que essas sejam quantias altíssimas, mas, quando comparadas a de outras indústrias, a reportagem nos indica que a indústria pornô continua sendo uma indústria marginal: A indústria é minúscula quando comparada a televisão (U$ 32,3 bilhões de em 1999, de acordo com Veronis Suhler), a televisão a cabo (U$ 45,5 bilhões), os jornais (U$ 27,5 bilhões), Hollywood (U$31 bilhões) e até mesmo as publicações educacionais (U$ 14,8 bilhões)35. A internet está lotada de sites apresentando números atuais grandiosos referentes ao lucro da indústria pornográfica, vinte ou mesmo trinta bilhões de dólares por ano afirmam alguns, mas, em sua imensa maioria, falta credibilidade a esses sites, principalmente por pertencerem a organizações religiosas ou de caráter, poder-se-ia afirmar, conservador, como os que se intitulam “defensores da família”. Não pretendemos, ao questionar os números disponíveis sobre a indústria pornográfica, duvidar da afirmação de Symons e Salmon quanto a sua importância como 35 The industry is tiny next to broadcast television ($32.3 billion in 1999 revenue, according to Veronis Suhler), cable television ($45.5 billion), the newspaper business ($27.5 billion), Hollywood ($31 billion), even to professional and educational publishing ($14.8 billion). ACKMAN, Dan. How Big Is Porn. Management & Trends. Disponível em: . Acesso em 23 out. 2010. 113 ficção erótica no imaginário masculino, apenas demonstrar que, quando se trata de sexo, exageros de toda a ordem tendem a ser feitos, não apenas naquilo que se exibe nas telas. Quanto aos romances cor-de-rosa, em 1997, os autores nos revelam que impressionantes 40% do mercado de livros paperback – os que não possuem capa dura e cujo papel é mais barato – nos Estados Unidos pertenciam a essa categoria, originando receitas que variam entre 4 e 6 bilhões de dólares. A Harlequin Enterprises, a maior editora do ramo, cujas vendas ultrapassariam a casa dos 190 milhões de livros por ano, teria alcançado uma receita de cerca de U$ 1,4 bilhões de dólares em 2007, a se confiar nos dados do jornalista Tom Jacobs, da revista Miller McCune36, a cujo artigo nos reportaremos mais adiante. Recentemente o escritor inglês Neil Gaiman escreveu em seu Twitter que a diferença entre a vida real e a ficção é que a segunda necessita fazer sentido, enquanto a primeira, não. Aparentemente tal conceito se inverte em se tratando de ficção erótica. Essa seria uma fonte excepcional de compreensão da psicologia do acasalamento em homens e mulheres porque, diferentemente do sexo praticado na vida real, a ficção não precisa fazer concessões e negociações, demonstrando ser matéria bruta dos desejos das audiências que visa atingir, ainda que pesem as restrições oriundas de orçamentos, tecnologia disponível e questões legais que dão limites a essa que seria, ponderamos, talvez a maior festividade do ID dentro dos limites da civilidade. Para além da produção erótica ou pornô, Symons e Salmon oferecem o exemplo de Rhett Butler, de E o vento levou, como herói forte de popularidade incontestável, há gerações. É ele o objeto do desejo da heroína Scarlett O‟Hara e não o também corajoso, porém culto e sensível Ashley Wilkes. Butler está mais próximo do estereótipo do homem bruto, agressivo e alheio a dilemas éticos, o tipo do herói que, fundamentalmente, sobrevive a tudo, sendo justamente esta a temática fundamental do filme e da natureza de nossa evolução. Provavelmente seja essa a razão pela qual os romances cor-de-rosa quase nunca apresentem um herói sensível e gentil, embora muito se diga em sociedade que este seria o tipo de homem que as mulheres buscam. Tudo indica que, no que concerne à fantasia, as mulheres preferem homens fortes e confiantes que em última análise serão “domados” apenas pelo amor que sentem pela heroína, o que torna a conquista mais excitante do que aquela que resultaria da posse do amor de um herói que já vem pronto para se entregar, o chamado “sensível”. 36 JACOBS, Tom. Romance Novel Titles Reveal Readers’ Desires. Miller-Mccune Smart Journalism. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2010. 114 Já na pornografia dedicada ao público masculino, os elementos inalterados seriam o sexo impessoal e o orgasmo feminino, este último um ingrediente fundamental do prazer dos amantes do filme pornô. Caso a mulher em questão não demonstrasse nenhum prazer durante o ato sexual e tampouco fosse filmada, reduzindo os close-ups apenas à região genital, despersonalizando a existência de uma mulher de verdade participando do ato, acreditamos que a maioria absoluta do público ficaria decepcionada. Não se trata apenas de ver a penetração e o ato sexual em si, mas de ver a potência masculina em ação, ver uma mulher tomada de prazer pela ação do homem, por isso os gemidos e gritos femininos – raramente os homens emitem sons muito altos nos filmes pornôs – e o foco muito mais presente no corpo feminino do que no masculino, incluindo o rosto. Vê-se claramente que a questão da autoestima é elemento essencial ao desfrute da fantasia sexual oferecida no filme pornô. Symons e Salmon fazem referência a pornotopia – termo cunhado pelo pesquisador Steven Marcus em seu livro The other Victorians37 (Os outros vitorianos), no qual ele estudou a presença e o uso da pornografia durante a conservadora Era Vitoriana, na Inglaterra do século XIX – ao descreverem a pornografia voltada para o público masculino, pois o sexo seria [...] apenas desejo e gratificação física, livre de namoro, compromisso, relações duráveis ou esforço de acasalamento. É um mundo no qual as mulheres estão ansiosas por fazer sexo com estranhos, são facilmente excitáveis e sempre orgásmicas (ou seja, a apresentação do prazer sexual das mulheres, real ou fingido, é um elemento essencial do pornô comercial). Os vídeos pornôs contém um mínimo de desenvolvimento de enredo, focando mais nos atos sexuais propriamente ditos e enfatizando os corpos femininos, especialmente com close-ups no rosto (mostrando excitação sexual), nos seios e nos genitais38 . Segundo os autores, o fato de que os vídeos pornôs, sejam em DVD ou disponíveis na internet, satisfaçam primordialmente as fantasias dos homens é um testemunho da natureza visual da sexualidade masculina: 37 O conceito original de pornotopia, como escrito pelo autor, é o de um lugar onde todos os homens são sempre e infinitamente potentes e todas as mulheres são fecundadas com desejo e cujo sumo ou vitalidade (referência ao líquido lubrificante da vagina durante a excitação sexual, no nosso entender) flui inesgotavelmente. Todo mundo está sempre pronto para tudo (Tradução nossa). No original: ―all men are always and infinitely potent; all women fecundate with lust and flow inexhaustibly with sap or juice or both. Everyone is always ready for everything‖. MARCUS, Steven. The other Victorians. London: W W Norton & Co Inc, 1985, p. 276. 38 [...] sheer lust and physical gratification, devoid of courtship, commitment, durable relationships or mating effort. It is a world in which women are eager to have sex with strangers, easily sexually aroused and always orgasmic (that is the depiction of women sexual pleasure, real or feigned, is an essential ingredient of mainstream porn). Porn videos contain minimal plot development, focusing instead on the sex acts themselves and emphasizing the display of female bodies, especially close-ups of faces (displaying sexual arousal), breasts and genitals. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 59. 115 Os homens tendem a se sentir sexualmente excitados por estímulos visuais “objetivos”. Como conseqüência, os vídeos pornôs não requerem a existência de pontos de vista dos personagens para ser efetivos e as cenas de uma mulher sozinha, masturbando-se, são relativamente comuns. O homem que a assiste imagina retirar a mulher dessa cena e fazer sexo com ela. As mulheres que estrelam os filmes pornôs apresentam alta pontuação de valor de acasalamento por serem jovens e sexualmente atraentes. A pornotopia, em resumo, é um mundo de sexo a baixo custo, impessoal, com uma infinita sucessão de mulheres excitadas, bonitas, orgásmicas39. Parece-nos evidente que o conceito de pornotopia acima descrito não encontra lugar no romance cor-de-rosa, tido por Symons e Salmon como o equivalente feminino, em termos de ficção erótica, ao vídeo pornô masculino. Embora, da mesma forma que no pornô para homens, esse tipo de literatura seja comprado por quem já sabe o que esperar do produto – ou seja, há um anseio de encontrar certas características permanentes – não há nenhuma intenção da heroína de fazer sexo com um fim em si, muito pelo contrário, e esses mesmos pesquisadores abordarão esse ponto em seu texto, em outro momento. Embora não seja negada a excitação sexual da heroína em relação ao homem de sua preferência, a relação sexual habitualmente ocorre somente como uma celebração do romance, ainda que em circunstâncias adversas. Simone Meirelles, na tese intitulada Romances com coração: leitura e edição de romances sentimentais no Brasil, diz que “pode-se resumir os romances dessas séries em uma frase: histórias de amor com final feliz”40. A ideia de fazer sexo com estranhos também é totalmente avessa ao enredo do romance cor-de-rosa. Segundo Symons e Salmon “a essência da trama de um romance é uma história de amor no decurso da qual a heroína ultrapassa obstáculos para identificar, ganhar o coração e, finalmente, casar-se com o homem que é o único possível para ela.41. Esse seria o motivo pelo qual não é possível produzir os chamados romances sentimentais em série, apresentando sempre a mesma heroína, como é feito nos filmes de 39 Men tend to be sexually aroused by ‗objectified‘ visual stimuli. As a consequence, porn videos do not require the existence of a point-of-view character to be effective, and scenes of a woman alone, masturbating, are relatively common. The male viewer imagines taking the sexually aroused woman out of the scene and having sex with her. Women porn stars manifest cues of high mate value in that they are young and physically attractive. Pornotopia, in short, is a world of low-cost, impersonal sex with an endless succession of lustful, beautiful, orgasmic women. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 60. 40 MEIRELLES, Simone. Romances com Coração: Leitura e Edição de Romances Sentimentais no Brasil. (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Letras. Universidade Federal do Paraná. Paraná: UFPR, 2008. 41 The core of a romance novel‘s plot is a love story in the course of which the heroine overcomes obstacles to identify, win the heart of, and ultimately marry the one man who is right for her. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 62. 116 James Bond. O caso é que o agente 007 nunca se filia a uma mulher de forma permanente, embora sempre se envolva com, no mínimo, uma por filme e até demonstre certos sentimentos em relação a ela. Não raramente ele é quem a salva de terríveis perigos. Nos romances cor-de-rosa, cada história termina com o estabelecimento de uma união permanente, com o alcance do ápice do objetivo daquele enredo, o equivalente ao orgasmo no filme pornô masculino, ousaríamos afirmar. Entretanto gostaríamos de registrar, como exemplo das mudanças no comportamento sexual feminino que pode, num futuro talvez não muito distante, colocar em cheque as características adaptacionais determinantes desse comportamento até agora, o crescente mercado do filme pornô feminino. Realizado por mulheres como as diretoras Cândida Royalle e Petra Joy, e tendo mulheres como seu público alvo, esses filmes diferem do pornô masculino por conterem maiores elementos de enredo, embora as cenas de sexo explícito não sejam escamoteadas: Um exemplo, extraído do filme five hot stories for her, da diretora Érika Lust: a mulher chega em casa e encontra o marido com outra, na cama. Em vez de terminar em ménage, como seria obrigatório num roteiro pornô clássico, a cena toma outra direção. A mulher traída vai embora e procura sexo com outro homem. Há, nos filmes, muito sexo entre mulheres (há um mercado de lésbicas a ser atendido) e sexo entre homens, algo que excita as mulheres [...] os homens são invariavelmente bonitos, em vez de truculentos.42 (grifo nosso) É realmente curioso que o pornô feminino venha de encontro a algumas ideias caras à visão tradicional da sexualidade feminina, como a de que a mulher não se excita pelo olhar e, portanto, não tem nenhum interesse nos filmes pornôs e algo que as slashers já sabiam nos primórdios da década de setenta: as mulheres se excitam ao imaginar dois homens fazendo sexo. No entanto, a forma como a ficção erótica é apresentada, mesmo em vídeo, traz diferenças significativas entre o produto de interesse masculino e o de interesse feminino. É particularmente interessante ler a declaração de Cândida Royalle, pioneira do pornô feminino de que queria “ver homens que parecessem ter cérebro e não apenas um pênis ereto”43. Diferindo radicalmente da ficção erótica masculina, a existência de um ponto de vista da personagem, com o qual a leitora possa se identificar é um elemento essencial da ficção 42 BUSCATO, Marcela; COLAVITTI, Fernanda. Pornô feito por mulheres para mulheres. Revista Época. Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2010. 43 Ibidem, p. 02. 117 erótica feminina. No romance sentimental, o ponto de vista da heroína é quase sempre predominante e as leitoras esperam poder identificar-se com a leitura de mundo por ela apresentada, ainda que estereotipada ou mesmo falha, caso submetida a um exame minimamente rigoroso. Não importa, pois o essencial nesse tipo de romance – da mesma forma que no slash – é a realização de um sonho íntimo, de uma fantasia pessoal, e não a análise das possibilidades de o relacionamento dar certo sob a luz da realidade. “O romance cor-de-rosa é ao mesmo tempo a ficção erótica e a ficção de aventura das mulheres”44, afirmam Symons e Salmon. Essa afirmação nos leva a crer que, por paralelismo, talvez o slash possa ser descrito como a ficção erótica de aventura transgressora das mulheres que o escrevem e leem, tão transgressora, que nem sequer utiliza heroínas como personagens principais, optando por colocar os homens na posição tanto de heróis, como de heroínas do romance erótico, uma vez que normalmente sempre há um deles que é mais „sensível‟ aos sentimentos românticos que levarão ao envolvimento sexual e amoroso do par. Segundo Symons e Salmon, os romances sentimentais variam muito na questão da explicitude da relação sexual, chegando mesmo a haver alguns em que a relação simplesmente não é descrita. Por outro lado, há também aqueles nos quais a relação é explicitada nos mínimos detalhes. O mesmo se passa com slash. Mas o que é curioso observar nele é que, no caso das histórias PWP (Plot, What Plot?), a trama se aproxima muito daquela da ficção erótica masculina de preferência universal, ou seja, o vídeo pornô. Praticamente não há enredo e a ideia é precisamente ir rapidamente para a descrição detalhada das relações sexuais com o objetivo, acreditamos, de elevar a excitação da leitora ao ponto máximo no menor espaço de tempo. Ainda assim, há uma diferença palpável entre o PWP e o vídeo pornô: nunca encontramos um slash desse tipo em que o sexo se desse casualmente entre estranhos. Mesmo não havendo a necessidade de comprometimento, fica implícito que os personagens das relações sexuais já tinham um envolvimento anterior entre si, como demonstrado na trama original e, muito possivelmente, questões latentes não resolvidas que culminam na relação sexual. Assim, percebemos diferenças importantes entre os romances sentimentais e alguns tipos de slash, caso concordemos com a ideia dos pesquisadores de que [...] embora a descrição das atividades sexuais seja comum nos romances, ela não é um ingrediente essencial. Quando o sexo é descrito ele serve à trama, ao invés de 44 The romance novel is at once women‘s erotica and women‘s adventure fiction. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 62. 118 dominá-la. O herói descobre na heroína um foco de satisfação para sua paixão, o que o enlaça a ela e assegura sua futura fidelidade45. Por outro lado, os autores afirmam que: As cenas de sexo retratam o controle do herói por parte da heroína e não a submissão sexual desta. A atividade sexual é descrita de forma subjetiva, primariamente através das emoções da heroína, ao invés de através de suas respostas físicas ou de descrições visuais e a heroína fica excitada de forma tátil ao invés de visualmente. O foco emocional de um romance está no amor, no comprometimento, na domesticidade e na afeição mútua46. Essa é uma afirmação perfeitamente plausível em relação à temática de muitas fanfictions slash que são, em sua maioria, muito românticas. Em sendo romances escritos por mulheres com base em um original, naturalmente o slash também apresenta os anseios femininos por sexo aliado à intimidade e ao compromisso, ao invés de sexo selvagem com estranhos com predomínio de impessoalidade e variedade. Ou seja, compreendemos que a aproximação do slash com o romance cor-de-rosa é perfeitamente possível, mas gostaríamos de ressaltar que, embora a maioria das fanfics slash sejam extremamente românticas, há exceções. Aparentemente o subgênero está apresentando tal grau de complexidade em sua multiplicação via internet que ele mesmo já apresenta subgêneros. Mapear os subgêneros que surgem demandaria uma extensa e interessante pesquisa etnográfica que, no entanto, pela natureza estática das pesquisas, deixaria a desejar em relação à dinâmica da realidade. Ainda assim, acreditamos que esta se faz necessária e a tese de Meirelles pode se revelar um importante contraponto nas semelhanças e diferenças entre o slash escrito no Brasil e os romances sentimentais consumidos no país. Paira também a pergunta acerca da possibilidade de as escritoras de slash serem leitoras de tais romances. Como vemos, o campo de pesquisa ainda é vasto. Aparentemente as leitoras de ambos os gêneros, slash e romances sentimentais, derivam uma clara satisfação sexual de sua leitura. No entanto, o slash, em sendo fanfiction, dá às leitoras a oportunidade de serem também autoras e de desenvolverem um diálogo com 45 [...] although the description of sexual activities is common in romances, it is not an essential ingredient. When sex is described it serves the plot rather than dominating it. The discovers in the heroine a fulfilling focus for his passion, which binds him to her and ensures his future fidelity. Ibidem, p. 62. 46 Sex scenes depict the heroine‘s control of the hero, not her sexual submissiveness. Sexual activity is described subjectively, primarily though the heroine‘s emotions, rather than through her physical responses or through visual imagery, and the heroine is sexually aroused tactually rather than visually. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 63. 119 seu público leitor, diálogo esse inexistente no caso dos romances sentimentais, nos quais inclusive os perfis das autoras são fabricados pela indústria, como explica Meirelles: Na percepção das leitoras, o autor é um dos fatores mais importantes na escolha dos romances sentimentais. [...] Não deixa de ser curioso, uma vez que o texto passa pela mão de diversas pessoas – tradutores, copydesks, editores -, é adaptado conforme os objetivos comerciais da editora, num sistema de produção47. O uso de biografias inventadas pelas editoras chega a ser doloroso quando pensamos na importância, para o leitor, do diálogo que este tenta realizar com o autor da obra de sua preferência. Claro que alguém poderia argumentar que as escritoras de slash também se apresentam com perfis falsos na internet, mas, pelo menos, num diálogo via e-mail, posts, fóruns e assemelhados, a leitora de slash tem a segurança de que não está sendo respondida por um funcionário pago, mas pela própria autora, ainda que dela se desconheça a intimidade ou mesmo a localização geográfica no país. Já a criação ficcional da existência de autoras portadoras de referências que provoquem identificação ou projeção de parte das leitoras de romances cor-de-rosa é de um nível de industrialização, em nossa opinião, degradante, pelo grau de manipulação a que se propõe: Essas “mini-biografias” (das autoras) são feitas em cinco ou seis linhas e são notadamente ficcionais, evocando, de um lado, uma atmosfera cotidiana de harmonia familiar. De outro, a possibilidade de que essas mulheres escritoras têm sucesso fazendo o que gostam, sem sair de suas casas ou cidades (normalmente elas moram em lugares desconhecidos, nunca em grandes centros como Nova York). A menção a prêmios recebidos reforça a legitimidade da leitura e da escritura. Os prêmios, indicados por associações pouco conhecidas no Brasil (talvez no mundo), podem das à leitora a sensação de estar lendo obras com apuro técnico, escritas por autoras consagradas e respeitadas internacionalmente. [...] São apresentadas como casadas e vivendo em harmonia com marido e filhos48. Mesmo dentro da industrialização da cultura há níveis possíveis de organicidade e acreditamos que o trabalho de fãs para fãs, sem intuito de lucro, é um dos mais orgânicos e interessantes. Em relação ao Potter Slash Fics, ao observarmos a troca cotidiana de e-mails, pudemos encontrar referências feitas a namorados, maridos e gravidezes que nos dão indicativos do gênero e da heterossexualidade dessas escritoras-leitoras. Optamos por não 47 MEIRELLES, Romances com Coração, p. 90. 48 Ibidem, p. 91. 120 apresentar todos esses e-mails nos anexos por acreditarmos ser contrário à ética da convivência no grupo, uma vez que recebemos permissão de uso de alguns comentários feitos nos e-mails, especificamente naquelas mensagens que envolvessem questões referentes às fanfictions, não a mensagens de cunho puramente pessoal na qual algumas participantes cumprimentam a outra por sua gravidez, por exemplo, ou no qual referências a maridos e filhos são feitas. Algumas trabalham fora, estudam em cursos superiores ou já os concluíram. Há, contudo, uma thread (corrente de e-mails sob um mesmo assunto), com comentários que, até certo ponto, respondem um questionamento levantado por parte da banca de Qualificação desta tese, o de que não havia provas sobre o gênero das autoras podendo tratar-se, inclusive, de homens gays escrevendo sob pseudônimos. Por isso, ousamos comentar e reproduzir emails que nos foram enviados sobre o assunto. Compreendemos como natural o comentário da banca, cuja surpresa frente à existência do slash faz eco àquela de Donald Symons, referida anteriormente no texto, e também a nossa. Embora saibamos da impossibilidade de comprovar, em loco, o gênero e mesmo a orientação sexual das autoras, podemos tomar seus testemunhos nessa thread – que chegou a 61 mensagens, um número alto, revelador da reação das participantes àquela sugestão – como indicativos de que, no Brasil, como no resto do mundo, predomina a presença feminina na leitura e escrita de slash. As reações das autoras, como as de A. e de N. respectivamente transcritas abaixo, foram de pura ironia: Eu era uma mulher até a última vez que chequei... *checando* Sim, continuo mulher. XD E olha, a menos que metade do PSF seja composto de travestis montados, o resto do povo quase todo são mulheres!49 muito bem Se eu não for mulher aconteceu um milagre, já que estou grávida! :)50 49 A. Tese x imagens. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 14 de janeiro de 2010. 50 N. Tese x imagens. 2010 121 A autora M. compreende o reconhecimento da estranheza mas, em favor do objeto de sua afeição, exalta um tipo de amor romântico bem semelhante ao dos romances sentimentais, comum em sua produção: Checando foi ótimo!!!! Mas o povo academico(sic) é muito quadrado... E na verdade eu infelizmente conheço pessoas que acham estranho mulheres escreverem slash... É que essas pessoas não viram a perfeição do amor entre Draco e Harry, Draco e Snape, Draco e Rony, Draco e Lupim #suspira#, Draco e Blaise ou Lucius e Arthur... São casais perfeitos... E a relação é tão mais delicada e cativante #suspira novamente#51 O assunto inclusive ocasionou o envio de uma mensagem por parte de um antigo membro, homem, L2., que há muito não participava dos debates mas que parece ter se sentido ultrajado pela insinuação de que gays seriam os principais interessados em slash. Olá, Estou aqui dando o ar da graça, que graça. Olha eu so (sic) homem, até que se prove o contrario ou amputem meu peepee, mas não vejo nada de errado mulheres escreverem slash ou yaoi, quer dizer que seria mais natural se mulheres só fizessem fics hetero ou lésbicas? E se eu quiser escrever historias lebicas (sic)? A gente, que raiva, agora eu sou gay novamente sem saber? Odeio quando fazem isso! Só por que eu escrevo yaoi e slash, eu sou gay. [...] Esse sistema de checagem bom? Preciso de um. Como faço pra saber se minha namorada é na verdade um homem? E eu fiz coisinhas com ela e nem notei. Agora que eu estava aprendendo mangá pra fazer fanarts de todo tipo, não vou mais desenhar yaoi, então? Eu voto por colocar esse povo na fogueira! rssrsrs t+…52 A leitura de manifestações como essas e o fato de haver mães envolvidas com o grupo nos levam a descartar a possibilidade de um grande número de adolescentes envolvidas com uma literatura erótica por via da experimentação típica da idade. Resiste, então, a questão do prazer propiciado pela leitura, notadamente a leitura erótica, prazer esse que, independentemente da questão de boa ou de má qualidade literária, cujo conceito pode oscilar conforme a época, permanece perene, apenas mais ou menos ousado. Mas há uma questão fundamental: no slash os protagonistas são, em sua maioria, homens escritos por mulheres em uma relação romântica homossexual, embora não o sejam nos originais. Por quê? Dentre as explicações plausíveis e absolutamente orgânicas, está o fato 51 M. Tese x imagens. 2010 52 L2. Tese x imagens. 2010 122 de, como comentamos anteriormente, mulheres parecem apreciar o sexo entre dois homens. Observemos o que escreveu L., ainda na thread supracitada: Bom... eu olhei em volta, olhei pra baixo, e afirmo veementemente (após consultar marido e filho): sou mulher ! rs [...]Eu sou mulher e gosto de escrever slash. É muito mais interessante ver dois homens se pegando, com tudo que tem direito (ah, aquele MONTE de carne sobrando nos lugares certos....) do que um casal hetero. Até porque literatura hétero (de qualidade, e até das duvidosas) tá cheio, né?53 A autora A também defende a ideia de que se trata de uma ficção excitante para mulheres e de que o fandom é majoritariamente feminino e tece considerações interessantes sobre porque não faria sentido homens homossexuais tentarem passar por mulheres dentro de um fandom slash. Ok, loucura a parte. Isso tem nome: estereótipos. Porque obviamente se você escreve slash, você é um homem gay. Se você anda com gays, você é gay. Quase aquele ditado da vovó: diga-me com quem andas que te direi quem és. Bullshit. Todos nós sabemos por vivência que o fandom é majoritariamente formado por mulheres, tanto aqui quanto nos EUA. E principalmente no fandom SLASH, oi, GAY, não faria sentido homossexuais se esconderem atrás de uma persona de mulher (obviamente é possível, se assim ele quiser, se ele se sente melhor assim, mas beira o incomum – sem preconceitos anexados aqui, hein). É completamente contraditório! Por que demônios num ambiente teoricamente „voltados‟ pra gays, os gays se esconderiam? Duh! Só falta dizer que o uso de pseudônimos femininos é porque obviamente todo gay tem o desejo interno de ser mulher (-NOT!). Essa ideia é só a incapacidade [...] de admitirem que, sim, mulheres podem achar dois homens se pegando a coisa mais sexy do mundo. Afinal de contas, pelo pensamento popular, estaríamos jogando „contra‟ os nossos próprios „interesses‟. O „correto‟ seria nós abominarmos isso, e querer „consertá-los‟, não é mesmo? (grifo da autora)54. Não é apenas a indústria pornô feminina (ou feminista) que tem consciência de que há um número crescente de mulheres interessadas em ficção erótica que as excite e que, frente a impossibilidade de homens que a produzam, farão suas criações com as próprias mãos ainda que artesanalmente. Os exemplos de que as mulheres ou, pelo menos, as mulheres envolvidas com slash gostam da ideia de ler ou ver cenas de sexo entre homens que consideram atraentes, abundam na internet. No post reproduzido a seguir, comentado dentro do fandom, 53 L. Tese x imagens. 2010 54A. Tese x imagens. 2010 123 descobrimos que a autora da fan art é moradora do hemisfério norte, tem uma família pela qual é responsável ou co-responsável, de forma que possivelmente é casada e com filhos, e está chateada com o fato de não ter conseguido realizar nenhuma viagem de verão com essa família devido às fortes enxaquecas das quais sofre e para as quais toma medicamentos que apresentam efeitos colaterais. Sentindo-se em débito com seu familiares, ela extravasa sua frustração enviando seu shipper preferido, Snarry (ou Snape/Harry), a uma praia tropical onde fazem sexo no mar. A si mesma e a uma amiga, possivelmente de internet e de fandom, a autora imagina sentadas na toalha estendida na areia, bebericando drinques de verão e apreciando a cena de sexo entre os personagens. Ela convida sua prospectiva leitora a fazer o mesmo, avisando que a toalha é grande o bastante para oferecer assento a quem queira juntarse a elas. É óbvio seu deleite pessoal com tal ideia, o que comprova o prazer que as mulheres sentem ao ver dois homens fazendo sexo: Current mood: cranky Entry tags: art, snarry Beach Party! Art (WS) Artist: veridian_dair Characters: Harry/Severus Rating: PG Summary: I'm living vicariously through my boys. A/N: Umbrella drinks for everybody! I have been Ms. Cranky-pants. I never managed to arrange any family get-aways this summer. Not a one. The weather has cooled and the leaves are already changing in my parts. I'm not ready to let go of summer yet! Oh, I tried a couple of times to mentally plan at least an overnight somewhere, maybe out to the coast. But these stupid migraines repeatedly get in the way and I'm just worn out. The anti-migraine medication works intermittently and has horribly yucky side effects. I tried going on a lower dose but I got walloped, so I went back on. I feel like I was a total fail for my family this summer. Hence the crankiness. So I've sent the guys out on the vacation I didn't get to have, to some nice tropical locale. I'd like to think that alisanne and I's muses are sitting on that blanket and have been for the last month having some fling apparently, sipping our umbrella drinks, watching for all they're worth and enjoying the eye candy. The blanket is big enough for whoever wants to join them. ;) *passes the omniocculars* *hears whispers from ali's muse* 124 (you've what? got an idea for this? yes, that will decidely make me less cranky, thank you)55 No entanto, nos perguntamos se é frequente a visitação feminina a sites gays que ofereçam o pornô visual, ou seja, o vídeo de dois homens fazendo sexo e acreditamos que possivelmente não seja essa a excitação que as autoras de slash busquem. O vídeo pornô gay não difere muito do vídeo pornô para heterossexuais do sexo masculino. Ponderamos que talvez não seja exatamente a excitação de ver quaisquer dois homens fazendo sexo, mas sim de ver ou descrever dois personagens aos quais se afeiçoaram que excita as autoras e leitoras de slash. Symons e Salmon cunham um termo interessante para descrever o mundo eróticoromântico dessa ficção feminina, distinguindo-a da ficção erótica masculina: romantopia. De acordo com os autores, na pornotopia as mulheres apresentam uma sexualidade mais próxima dos padrões masculinos, propositadamente modificada para o benefício desse público. Da mesma forma, nos romances sentimentais a sexualidade masculina seria transformada para se conformar aos desejos femininos, como também no slash em que se os protagonistas procuram um amor verdadeiro, ou pelo menos, a estabilidade doméstica de um casal perene, em completa oposição à ideia de sexo com estranhos. Os pesquisadores compreendem o cerne do romance sentimental como sendo a narrativa da [...] escolha, por parte da mulher, de um parceiro de acasalamento, na qual a heroína vencerá obstáculos para identificar, conquistar e casar com o herói, que personifica as características físicas, psicológicas e sociais que constituíram alto valor de acasalamento para um homem, durante o curso da história evolucionária da humanidade56. Não haveria, perguntamos, a possibilidade de mercado para uma ficção erótica, fosse sobre o suporte filme ou sobre o suporte códex, que reunisse elementos tanto da pornotopia quanto da romantopia e que pudesse, dessa forma, contentar a ambos os gêneros? Acreditamos que alguns blockbusters (filmes comercialmente muito bem sucedidos), como Instinto Selvagem, trafegaram – ainda que tenuamente, pois que dentro das normas comercialmente aceitáveis – em ambos universos eróticos, misturando cenas de sexo 55 VERIDARI. Snarry. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2010. 56 [...] of female mate choice in which the heroine overcomes obstacles to identify, win and marry the hero, who embodies the physical, psychological and social characteristics that constituted high male mate value during the course of human evolutionary history. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 67. 125 razoavelmente explícitas com estranhos e o desejo do sexo pelo sexo, com ingredientes de romantismo e o aceno de um possível final feliz. Os pesquisadores, porém, afirmam que as questões fundamentais constitutivas da pornotopia e da romantopia são mutuamente excludentes sendo o clímax, na primeira, tantas ejaculações quantas couberem no filme, enquanto na segunda seria o momento em que o herói e a heroína declaram seu mútuo amor. Talvez isso seja verdadeiro em se tratando de romances sentimentais, mas acreditamos que no universo slash há um nível de transgressão que reúne, sim, elementos da pornotopia e da romantopia, salientando-se um ou outro, de acordo com o gosto da autora em questão e seu público. Não há atualmente, no nosso entender, limites tão definidos para a narrativa slash – que, na verdade, abriga um amplo leque de subgêneros – como os explicitados por Symons e Salmon em se tratando de ficção erótica masculina e feminina de cunho comercial. Para testar a hipótese de que haveria uma diferença significativa na constituição psicológica das fãs de slash e outras mulheres, fãs de romances sentimentais, os autores pediram às participantes de um grupo de leitoras desse gênero de romance que lessem uma novela por eles escolhida, The catch trap, de Marion Zimmer Bradley e subsequentemente respondessem a um questionário elaborado para elicitar suas reações à leitura. A escolha dessa novela se deve ao fato de a narrativa apresentar um romance entre dois homens, semelhante àqueles desenvolvidos em histórias slash. Por que não apresentar às leitoras um romance genuinamente slash? Eis a argumentação dos pesquisadores: Um romance slash teria sido completamente inapropriado para nosso propósito, porque o slash é, em primeiro lugar, fan fiction. A escritora de slash pode assumir, e o faz, que seus leitores estão intimamente familiarizados com o cenário e os personagens de sua história, de forma que ela não precisa fornecer esses elementos dramáticos. Para realmente apreciar um trabalho ficcional do gênero slash, o leitor precisa estar familiarizado com o programa de televisão do qual a história é derivada, precisa gostar do show e precisa achar pelo menos um dos protagonistas atraentes57. Os autores não fornecem maiores detalhes da pesquisa efetuada, como número de participantes envolvidas ou mesmo a apresentação do questionário através do qual as respostas forma colhidas. Eles parecem apoiar-se sobretudo na seguinte questão: “Comparado 57 A slash novel would have been completely inappropriate for our purposes, because slash is, first and foremost, fan fiction. The slash writer can and does assume that her readers are intimately familiar with the fictional setting and characters in her story, hence she does not need to supply these dramatic elements. To really appreciate a work of slash fiction one must be familiar with the show from which it is derived, one must like the show and one must find at least one of the male leads attractive. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 78. 126 a outros romances que você leu, quanto você gostou de The catch trap?”58. Setenta e oito por cento das leitoras afirmaram terem gostado da história tanto quanto gostaram a maior parte dos romances cor de rosa já lidos até então, e um número “significativamente alto”, nas palavras dos autores, declarou ter gostado mais do que a média dos romances cor de rosa lidos. Embora admitindo que seu estudo é de pequeno porte, Symons e Salmon acreditam que ele basta para refutar a hipótese de um desajuste psicológico de parte das envolvidas com slash, pois a maior parte das leitoras de romances teria demonstrado gostar de uma história que retrata o envolvimento amoroso de dois homens (male/male romance) e se identificado com um dos protagonistas. Não podemos deixar de notar que o livro em questão foi escrito muitos anos antes do sucesso estrondoso do filme O segredo de Brokeback Mountain, adaptação para o cinema do romance de Annie Proulx, jornalista e escritora americana. Se fosse contemporâneo acreditamos que bastaria aos pesquisadores observar a reação das platéias nas saídas do cinema, o encantamento das mulheres e o desconforto dos homens, para saber que, sim, mulheres apreciam histórias de amor que relatam o envolvimento amoroso entre homens. Uma pequena prova da visibilidade do slash no cotidiano de mulheres envolvidas com a escrita na internet, embora o assunto possa parecer muito distante do entorno cultural na qual esta tese é apresentada, é a tranquilidade com que este é referido no mundo pop. A série em quadrinhos que apresentamos abaixo a título de exemplo – muitas vezes retuitada59 por pessoas que nada teriam a ver com o fandom – retrata a vida de um grupo de estudantes universitárias norte-americanas. Nessa tira há uma divertida menção ao slash, apresentando-o como hobby de uma das personagens, um tanto quanto tímida e romântica, o que imediatamente nos remeteu à teorização de Symon e Salmon e a compreensão que apresentam sobre essas histórias. Uma colega lê sobre seu ombro o que ela está escrevendo e, surpreendentemente, o slash em questão foi escrito por outra aluna, a qual a primeira se dirige pedindo um autógrafo em seu netbook: 58 ‗Compared to other romances you have read, how much did you enjoy The catch trap?‘ Ibidem, p. 79. 59 Ou seja divulgada através do Twitter, site de relacionamentos onde se postam mensagens com até 140 caracteres. 128 60 60 QUESTIONABLE CONTENT. Questionable Content Disponível . Acesso em: 12 nov. 2010. em: 129 O slash que a personagem lia, para nossa surpresa e confirmando a popularidade do subgênero que toma por base esse canon, trata especificamente da série Harry Potter e rendeu vários dias de quadrinhos nessa série. A primeira tira é de número 1786. Abaixo reproduzimos outra tira – de número 1790, mas não a última – na qual as autoras (sim, pois a leitora da primeira tira também escreve e está em busca de conselhos para melhorar seu texto) de slash debatem a questão da qualidade do que se escreve e a importância de seduzir o leitor através do texto. A autora mais experiente tenta ensinar a novata sem sucesso enquanto essa se apaixona (e cora!) pela ideia – ou seja, pela imagem que surge em sua mente, pelo que imagina, fantasia – de uma relação erótica entre Ron Weasley e o professor Snape. A questão da diferença de idade entre eles é, possivelmente, mais um elemento erótico que torna o professor Snape tão desejado no universo slash, afinal, ele tem e apresenta muitas das qualidades do estereótipo masculino: é durão, distante, misterioso, poderoso e, a princípio um vencedor. Apenas ao final da série Harry Potter é que ficamos sabendo que Snape é atormentado por um amor que nunca se realizou. Convenhamos, ele apresenta todas as características de alto valor de acasalamento elencadas por Symons e Salmon além de elementos comuns aos romances sentimentais. Possivelmente pela convergência desses fatores, Snape pareça ser um personagem perfeito para fan fictions slash e sua presença no fandom potteriano seja tão ampla: 130 61 QUESTIONABLE CONTENT, Questionable Content, 2010. 61 131 Acreditando que os teóricos que previamente estudaram o romance slash teriam se equivocado ao não situá-lo dentro da ficção romântica erótica feminina por terem considerado que esse era diferente do que havia sido escrito até então, Symons e Salmon listam as características encontradas por vários pesquisadores como definidoras da fan fiction slash. São elas: descrições explícitas de atividades sexuais; protagonistas andróginos; mudanças do ponto de vista/identificações múltiplas e relações de amor igualitárias. Não é que os autores discordem de que essas sejam características presentes no slash. Eles apenas argumentam que, em maior ou menor intensidade, elas também se encontram presentes na ficção erótica feminina em geral. Em primeiro lugar, eles reconhecem que encontraram mais explicitude, mais cenas gráficas, na descrição das atividades sexuais no slash do que nos romances sentimentais. No entanto, compreendem que a ênfase se encontra sempre na qualidade emocional do sexo do que nas sensações físicas, da mesma forma que nos romances não slash: No slash, como nos romances comerciais, o sexo ocorre dentro de relações nas quais há comprometimento, como parte de uma troca emocional significativa e a história do desenvolvimento amoroso tem precedência sobre os detalhes anatômicos. Nos romances comerciais bem como no slash o sexo serve a trama, enquanto que no pornô masculino ocorre o inverso. Além disso, as artes que ilustram muitas das histórias slash são evidentemente românticas e altamente reminiscentes das capas dos romances sentimentais62. Segundo os autores, apesar da nudez presente nesse tipo de fan art, a penetração dificilmente é mostrada. No caso dos exemplos apresentados ao longo desta tese temos de concordar com ambas as afirmações. São artes românticas, sem dúvida, e a penetração não é explicitada graficamente. No entanto, durante o processo de escolha dessas artes, percebemos que as cenas de sexo constituem um elemento bastante comum nas fan arts do fandom potteriano e é forçoso admitir que escolhemos propositadamente aquelas que não fossem muito agressivas ao olhar do leitor de textos acadêmicos. 62 In slash, as in mainstream romances, sex occurs within committed relationships as part of an emotionally meaningful exchange, and the story of developing love takes precedence over anatomical details. In mainstream romances and slash alike, sex serves the plot, whereas in male-oriented porn it is the other way around. Furthermore, the artwork that illustrates many slash stories is unabashedly romantic and highly reminiscent of romance-novel cover art. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 83. 132 Cotejando o slash com a ficção erótica masculina, Symons e Salmon surpreendem ao explicar que esse é, na verdade, menos pornográfico do que é acusado, não importando quão explícitas sejam as descrições de atos sexuais: Frequentemente se diz que o slash é mais pornográfico que outras formas de ficção erótica feminina porque ele tende a conter mais sexo gráfico, mas, sob certo ângulo ele é na verdade menos pornográfico. A essencia do pornô orientado para homens não é, realmente, a descrição gráfica do sexo (afinal existe também o pornô softcore), mas, na verdade, a apresentação do sexo como um fim em si mesmo. Nenhuma forma de ficção erótica feminina apresenta o sexo desta forma, mas no romance comercial a atração sexual e, geralmente, o comportamento sexual são fundamentais para o estabelecimento de um elo entre o herói e a heroína. No slash, entretanto, o laço de amizade já está firmemente estabelecido muito tempo antes de o sexo vir à tona63 (grifo dos autores). Ou seja, a importância dos laços emocionais no slash seria igual ou maior do que aquela esperada nos romances cor-de-rosa. Meirelles, em sua tese sobre o romance sentimental e o seu consumo no Brasil, afirma que as leitoras entrevistadas buscam “modelos repetidos que muitas vezes reproduzem os arquétipos dos contos de fadas”64 e critica os padrões paternalistas dos enredos, nos quais os papéis atribuídos aos homens e às mulheres numa sociedade machista são apresentados de forma sub-reptícia sem que as leitoras se incomodem com eles ou critiquem o conteúdo ideológico dessas ficções. Possivelmente esta seja a maior diferença entre o slash e o romance sentimental. A diferença residiria menos na apresentação do sexo em si e mais na ausência da mocinha dependente de um homem, uma vez que a relação se dá entre “iguais”? Se esse for o caso, a tentativa de subversão do patriarcado citada anteriormente por ativistas do fandom não seria tão radical assim, uma vez que o laço afetivo, que vimos a compreender ser caro ao cérebro feminino por questões adaptacionistas, permanece inalterado. Além disso, nos romances chamados First time scenarios (cenários de primeira vez), mapeados por Beacon-Smith em seu pioneiro estudo, Entrerprising Women, há sempre um membro do casal que se encontra em desvantagem em 63 Slash is often said to be more pornographic than other forms of women‘s erotica because it tends to contain more graphic sex, but in a sense it is actually less pornographic. The essence of male-oriented porn is not really the graphic depiction of sex (there is, after all, soft-core porn), but, rather, the depiction of sex as an end in itself. No form of women‘s erotica depicts sex that way, but in the mainstream romance novel sexual attraction and, usually, sexual behaviour are integral to establishing the bons between hero and heroine. In slash, however, the bond of friendship is firmly in place long before sex rears its head. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 86. 64 MEIRELLES, Romances com Coração, p. 249. 133 relação ao outro, seja porque não reconhece seus sentimentos, seja porque está em situação de perigo e precisa ser salvo, ou ambos. Não são incomuns as relações assimétricas entre os casais de fan fictions slash, em nossa opinião. Mesmo no fandom potteriano, em que à primeira vista não haveria a possibildade de um sólido laço de amizade entre personagens como Harry Potter e Draco Malfoy, arquiinimigos no cânon, é óbvia a reviravolta emocional que a história apresentará, com o ódio se transformando em amor depois que um personagem sobrepuja o outro, seja física ou afetivamente. Não tencionamos discordar gratuitamente de teóricas profundamente envolvidas com o slash como Anne Kustriz sem a realização de uma extensa pesquisa sobre as histórias slash do fandom potteriano brasileiro, que é vasto e diverso em sua produção, mas nos permitirmos duvidar que a ideia de transgressão radical da sociedade patriarcal esteja presente em todas as fan fictions do gênero slash, pela simples criação de um romance male/male. Em relação aos protagonistas andróginos, Symon e Salmon são da opinião de que qualquer protagonista de um romance tende a apresentar traços femininos e masculinos, principalmente por entenderem que é tencionado, nos romances, da mesma forma que no slash, adaptar o macho a padrões femininos para gozo da leitora. Acreditamos que o mecanismo de projeção pode ocorrer na elaboração do slash mais romântico, o que explicaria a assimetria em suas relações. A projeção consiste em atribuir ao outro um desejo próprio, de forma que a autora tanto pode se projetar no personagem ascendente na relação, numa forma de transgressão que forja a ruptura com uma posição social de submissão, quanto no personagem em posição frágil, como realização de uma fantasia sexual. Isso com a vantagem de imaginar dois homens fazendo sexo sem retirar deles características de sedução que a atraíram para eles, ou seja, sem deixar de desejá-los. As mudanças de ponto de vista do narrador, muito comuns também no slash potteriano brasileiro, são estudadas por Symons e Salmon como não predominantes. Os autores admitem sua presença frequente no slash, mas acreditam que há um ponto de vista predominante nesse tipo de história e que – corroborando nossa suspeita da existência de projeção de características de heroínas de romances cor-de-rosa em fan fictions slash românticas – tal ponto de vista é geralmente o do mais frágil na relação: 134 Ao descrever os traços físicos de seus protagonistas os escritores de slash são, até certo ponto, delimitados pelos traços dos atores que os representam. No entanto, a licença poética frequentemente possibilita que o personagem com o principal ponto de vista seja o menor dos dois, de pele mais clara, fisicamente mais fraco, mais dedutor, mais em contato com suas emoções e mais rápido na percepção da existência de amor mútuo65. Ainda, os pesquisadores chegam mesmo a afirmar que durante um episódio de sexo anal cada protagonista pode se revezar nos chamados papéis ativo e passivo, mas que o personagem cujo ponto-de-vista narra a história é o que mais frequentemente exerce o papel passivo. Finalmente, face às argumentações de que a fan fiction slash apresenta formas de amor mais igualitárias que as comumente encontradas na ficção erótica feminina comercial, os autores argumentam que não há, necessariamente, tal diferença. Tanto no slash quanto nos romances sentimentais as diferenças entre os protagonistas são consideradas complementares e dentro da relação do casal não há o uso abusivo de poder por parte dos protagonistas: E, no slash, embora os temas da batalha entre os sexos sejam relativamente emudecidos, eles continuam presentes. Como nos romances sentimentais, questões de comprometimento são exploradas („ele realmente me ama?‟) e uma sexualidade masculina naturalmente promíscua é transformada e amansada pelo poder do amor de criar um laço permanente, íntimo, nutridor, monogâmico66. Os autores ainda apresentam quatro outros exemplos elencados por eles como sendo evidências das inescapáveis semelhanças entre os romances sentimentais e o slash. O primeiro deles é a questão da virgindade. Symons e Salmon afirmam que nas análises acadêmicas realizadas sobre os romances cor-de-rosa dá-se grande importância ao fato de a heroína entregar sua virgindade ao herói. Nas fan fictions slash cujo cenário seja de Primeira vez, é uma convenção comum que ambos os protagonistas sejam virgens quanto ao sexo anal o que ofereceria 65 In describing their protagonists‘ physical traits, writers of slash are to some extent constrained by the actual traits of the actors who play the parts; neverthless, poetic licence frequently enables the main point-of-view character to be the smaller of the two, lighter in colouring, physically weaker, more seductive, more in touch with his emotions and quicker to perceive the existence of mutual love. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 85. 66 And in slash, although battle-of-sexes themes are relatively muted, they are still present. As in mainstream romances, issues of commitment are explored (‗Does he really love me?‘) and a naturally promiscuous masculine sexuality is transformed and harnesses by the power of love to create a permanent, intimate, nurturing, monogamous bond. Ibidem, p. 87. 135 [...] um significado todo novo para a frase „ninguém nunca me fez sentir assim antes‟. Em ambos os gêneros a perda da virgindade fornece ressonância emocional, afirmando o comprometimento do casal com o laço que eles dividem apenas entre si. A prevalência e a popularidade no slash de história de “primeira vez” ecoam o tema central do romance sentimental: a busca pelo parceiro ideal e a resolução dessa busca numa união sexual67. Encontramos no trabalho da pesquisadora norte-americana Sheenagh Pugh, autora de um livro debatendo a fan fiction no contexto literário, uma crítica à afirmação de Symons e de Salmon de que o slash seja um subgênero do romance sentimental. Ela argumenta que o slash não começou como tal e que alguns dos paralelismos que os autores traçam entre essas ficções eróticas femininas não se sustentam e, notadamente, analisa o do cenário da primeira vez, discordando que o sexo anal [...] equivale a heroína do romance sentimental entregando sua virgindade ao herói. Em primeiro lugar, num cenário slash de “primeira vez” ambos os protagonistas provavelmente estão contemplando a atividade em questão pela primeira vez, o que raramente é o caso com os heróis de romances cor-de-rosa. Em segundo lugar, no romance sentimental há uma inevitabilidade em relação à entrega da virgindade, geralmente no contexto de um casamento: mesmo que [o ato] aconteça fora de cena é o final natural da história e tanto nós quanto a heroína sabemos disso. Não há inevitabilidade no cenário slash de primeira vez, que tradicionalmente envolve um homem que nunca tinha tido a oportunidade de pensar sobre si mesmo como outra coisa além de heterosexual e que agora teve de repensar a si mesmo e às suas relações68. No entanto, a continuidade da leitura do capítulo que a autora dedica ao slash parece nos remeter à concordância com o paralelismo traçado por Symons e Salmon entre os romances sentimentais e o slash, inclusive com depoimentos de sua mailing list, de autoras que afirmam verem os protagonistas do slash „se abrindo para suas emoções‟, sendo essa uma 67 A whole new meaning to the phrase ‗no one has never made me feel this way before‘. In both genres the loss of virginity provides emotional resonance, affirming the couple‘s commitment to a bond they share with no one else. The prevalence and popularity in slash ‗first time‘ stories echoes the core theme of the romance novel: the search for the one right partner and the resolution of that sexual union. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 87. 68 [...] equates with the heroine in mainstream romance giving her virginity to the hero. For one thing, in a ―fisrt time‖ slash scenario both protagonists are quite likely to be contemplating the activity in question for the first time, which is seldom the case with heroes of mainstream romance. For another, in mainstream romance there is an inevitability about the eventual surrender of virginity, generally in the context of marriage: even if it happens offstage it is the natural end of the story and we and the heroine both know it. There is no inevitability about the ―first time‖ slash scenario, which traditionally involved a man who had never had occasion to think of himself as other than straight and who now had to rethink himself and his relationships. PUGH, Sheenagh. The Democratic Genre – fan fiction in a literary context. Glasgow: Seren Publisher, 2005, p. 96. 136 característica mais importante do que o próprio ato sexual em si. As palavras da pesquisadora corroboram, talvez sem que ela o tenha percebido, a ideia de o slash pertencer a uma romantopia, ou seja, à ficção erótica feminina que adequa a sexualidade masculina a seu desejo, para deleite pessoal: Essa visão do slash de tornar físicas as emoções também explicaria o porquê de escritoras de slash às vezes se enfrentarem discordâncias de leitores homens (não que existam muitos) que objetam que o sexo simplesmente não é daquele jeito para os homens – gays, hetero ou indecisos; eles não falam e demonstram emoções tanto assim. As escritoras de slash sabem disso: de certa forma, essa é parte da questão. Um protagonista que passe pelo slash tem mais a ver com o como as escritoras desejariam que um homem fosse, do que como elas sabem que os homens são. [...] Se alguém é uma escritora, o que ela disser sobre seus personagens também diz um pouco sobre ela mesma e o tipo de relacionamento que ela quer69. A exclusividade no relacionamento é a segunda característica que, na visão de Symons e de Salmon, permeia os romances cor-de-rosa da mesma forma que o faz no slash. Possessividade, ciúme e monogamia são elementos de fricção entre os protagonistas de ambos os gêneros e o personagem sexualmente mais experiente irá se render à relação monogâmica, deixando para trás seu histórico de promiscuidade, por ter finalmente descoberto o que é o verdadeiro amor. Muito comum também, e complementar à situação que acabamos de descrever, é o tema da rivalidade, terceiro elemento elencado pelos autores. A entrada de um terceiro elemento que possa abalar a estabilidade do casal faz com que o protagonista em perigo de perder seu amor tenha que provar sua coragem, seu comprometimento amoroso e reaja de forma a reaver o que „é seu‟. Finalmente, e também complementar às características anteriormente descritas, está a questão da masculinidade. Embora engajados numa relação homossexual, um dos protagonistas do slash fará eco ao herói do romance sentimental na apresentação e no uso de características masculinas que, em nossa opinião, chegam a beirar o estereótipo, mas, na visão dos autores, contam na escala evolucionista que pontua o valor de um macho para o acasalamento, como altura, saúde, força, destemor, sagacidade e lealdade, dentre outros. 69 This view of slash as physicalising emotion would also explain why slash writers sometimes find themselves at odds with male readers (not that there are many) who object that sex just isn‘t like that for men – gay, straight or undecided; they don‘t talk ore mote about it so much. Slash writers know that: in a way, it is part of the point. A slashed hero has more to do with what the writers wish men were like than what they know men are like. […] if someone is a writer, whatever she says about their characters will also say something about herself and the kind of relationships she wants. PUGH, The Democratic Genre, p. 102. 137 Dadas as semelhanças entre o slash e o romance sentimental, uma pergunta se impõe: por que a preferência pelo slash, de parte dessas autoras e leitoras cujo número, como pudemos constatar, não é insignificante? Se não há nenhum distúrbio psicológico – e, realmente, acreditamos que não há – que justifique sua opção por um tipo de escrita e leitura erótica não comumente encontrada fora do fandom, por que essas mulheres não se contentaram em escrever e ler o tipo de romance erótico convencional, bem sucedido comercialmente? Da mesma forma que Symons e Salmon, queremos salientar que nossas proposições de resposta são meras tentativas de abordar um tema para o qual não há estudos conclusivos e que a própria temática da motivação é, em si, bastante elusiva quando se trata de tecer generalizações. Symons e Salmon propõem duas respostas plausíveis e mutuamente compatíveis. Em primeiro lugar, sugerem os autores, as mulheres preferem a fantasia slash de serem também guerreiras, através do mecanismo de projeção, do que de serem a „esposa do guerreiro‟: A ficção slash é baseada na amizade e em aventuras compartilhadas; seus protagonistas matam os dragões um do outro, tanto física quanto emocionalmente. Algumas mulheres podem preferir a fantasia de ser co-guerreiras do que de ser a Senhora Guerreiro e a fantasia de ser um herói que triunfa sobre as forças do mal do que a de ser a heroína que triunfa sobre o macho alfa70. É uma possibilidade que faz sentido, principalmente se levarmos em conta as mudanças na condição feminina nas sociedades ocidentais nas últimas décadas. Os autores, no entanto, tendem a relacionar essas escolhas com mulheres cujo perfil seja de alguma forma masculinizado, seja porque preferiam atividades mais comumente realizadas por meninos na infância (as chamadas Tomboys), seja por serem mais assertivas e dispostas a correr riscos na idade adulta. Uma sugestão desse porte incorre o risco de escorregar para o sexismo e carece, a nosso ver, de pesquisa de longo prazo e alcance. Em segundo lugar, o slash resolveria um problema inerente ao enredo dos romances formulaicos de forma mais bem sucedida, o que também seria um atrativo para as mulheres. O problema em questão é justamente o do final feliz „para sempre‟. Segundo a perspectiva evolucionista dos autores, é difícil acreditar que com o passar dos anos o casal se manterá 70 Slash fiction is base don friendship and shared adventure; its protagonists slay each others‘ dragons, both physical and emotional. Some women may prefer the fantasy of being a co-warrior to that of being a Mrs Warrior and the fantasy of being a hero who triumphs over the forces of evil to that of being a heroine who triumphs over an alpha male. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 90. 138 unido em perfeita harmonia uma vez que a aparência feminina seja desgastada pelo tempo. As mulheres seriam céticas de que a paixão que incendeia as páginas da ficção erótica heterossexual se manteria caso sua aparência envelhecesse e perdesse o apelo sexual imediato e, darwinianamente, parecem ter bons motivos para pensar assim: O slash diminui a dificuldade da realização de finais felizes para sempre de forma mais bem sucedida que os romances sentimentais. Uma vez que a fidelidade mútua dos heróis de slash nunca foi baseada na paixão sexual pelos corpos uns dos outros, ela é muito menos vulnerável as decadências dos envelhecimentos e as tentações de novos – especialmente jovens – corpos. Um protagonista de slash nunca precisa se perguntar, „será que ele vai se cansar do meu corpo e me amará menos a medida que meu corpo envelhecer com a idade?‟, porque o amor de seu companheiro não dependeu da aparência física em primeiro lugar71. Parece-nos, no entanto, haver um equívoco aqui. Se na romantopia as mulheres criam ficções eróticas que adequam a sexualidade masculina às suas fantasias, por que a questão da perda do poder de sedução com o passar da idade não seria também romantizada? O que nos perguntamos é, por que só em relação à passagem do tempo essas mulheres iriam retirar a suspensão da descrença, que lhes possibilitou trafegar durante o decurso de toda a história? É possível que os autores tenham esquecido de avaliar um componente essencial para a existência da ficção erótica feminina denominada slash, que é a fantasia sexual, presente mesmo em histórias muito românticas. Dois homens atraentes e conhecidos, ou seja, aos quais essas mulheres já se afeiçoaram previamente, fazendo sexo poderia ser motivo suficiente para justificar a preferência pelo slash? Acreditamos que essa é uma motivação perfeitamente plausível e reproduzimos trecho de e-mail de autoria da autora L., recebido pelo grupo ao qual nos afiliamos, o Potter Slash Group, como indício da importância dessa fantasia para as autoras e leitoras envolvidas com o slash: 71 Slash mitigates this impediment to the happily-ever-after ending more successfully than mainstream romances can. Because the mutual fidelity of slash heroes has never been grounded in sexual passion for each other‘s bodies, it is far less vulnerable to the depredations of ages and the temptation of new – especially younger – bodies. A slash protagonist need never wonder, ‗Will he become bored with my body or love me less as my body withers with age?‘ because his partner‘s love didn‘t depend on physical appearance in the first place. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 92. 139 Fiquei cá com meus botões pensando: oras, SE todos (indistintamente TODOS) os homens com vida sexual normal fantasiam em ver duas mulheres fazendo sexo (até aqueles mais puritanos que não admitem isso), QUAL O GRANDE PROBLEMA em imaginar - vejam, eu só coloquei imaginar, vejam como eu sou boazinha - que uma mulher ache excitante dois homens fazendo sexo ???? Somos todos humanos, a libido é - praticamente - a mesma, então qual a grande diferença ? Sim, as mulheres foram e continuam sendo mais castradas socialmente, sim, elas não podiam nem pensar em se expressar sexualmente na grande maioria dos últimos 20 séculos, mas... cara, porque não ???? Homem pode gostar de ver, fantasiar e sonhar com duas mulheres juntas e mulher não pode ? Miséria de pensamento esse, hein ? Uma única palavra : preconceito. Pré-conceito que mulher não fantasia, que mulher não gosta de imaginar, que mulher não curta algo "diferente" (e aqui questiono esse diferente, porque, se é maioria entre os homens, quão diferente realmente é isso?)... ah, é preconceito e prontofalei72. Muitas outras autoras escreveram para apoiar essa manifestação de L., mas, ao mesmo tempo, revelaram dificuldades enfrentadas em virtude desse exercício de fantasia sexual. Ao que tudo indica, a questão da repressão sexual ainda cerceia o desejo feminino e é nesse ponto que nos perguntamos se não haveriam modificações mais profundas ocorrendo em nossa mentalidade, mais distantes da herança evolucionista, que, no entanto, ainda não se encontram aparentes nas famílias das classes médias. Abaixo um e-mail da autora G., em que ela conta como os pais reagem ao seu envolvimento com o slash: Cara... Eu já passei por umas oito conversas inconfortáveis (sic) aqui em casa. Tudo pq meus pais vasculharam o pc ou o note e ficaram de cabelos em pé com as fics, as arts e/ou fotos. Tive que parar com isso e ficar apagando histórico. Não entendo pq mulheres não podem curtir as mesmas coisas do que homens. Fico com a terrivel sensação de que mulher sempre tem ficar recatada se não quiser ser alvo de situações desconfortáveis73. A autora A. relata já ter passado por situação semelhante, aparentemente não apenas em relação ao slash, mas à pornografia como um todo: 72 L. Fanfic na universidade. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 01 de dezembro de 2010. 73 G. Fanfic na universidade. 2010 140 Same here. Meus pais já me pegaram com porn quando eu era mais nova em mais de uma ocasião e Deus sabe que não foi agradável – constrangedor nem começa a cobrir o trauma. Agora que eu sou maior de idade eles seguram a onda, mas eu tenho plena consciência de que eles ficam monitorando o que eu faço, até porque, eles sabem meu Nick. E ainda hoje eu escuto alguns comentários sobre meus “gostos” ou as coisas que eu vejo, como se ver pornografia fosse algum tipo de crime. E eu não vejo absolutamente nada demais.74 Esse debate proporcionou a manifestação de uma autora que há muito aparentemente não se envolvia com o grupo, L.A., mas que declarou acompanhar cada thread, embora enfrentando problemas de saúde: Concordo plenamente com vc, Alis. O fandom slash é bem mais explícito, com alguns textos beirando o mau gosto, mas outros explendidamente escritos, com fartura de sensações, emoções e todas as outras coisas que cercam o ato sexual. Afinal, sexo é exploração de tudo, da psiquê, dos sentidos, dos pensamentos... Tudo misturado e formando um ato que em si nem sempre é 'fazer amor'. Ponto pra gente! Por isso me sinto realizada por vencer uma vida inteira de repressão sexual qto (sic) a algo que sempre apreciei, mas parecia algo 'anormal'. Amo vcs por me entenderem e por dividirem isso comigo75. A ideia da amizade entre os protagonistas como fundamental para a preferência pelo slash em detrimento do romance sentimental é um ponto que Symons e Salmon fazem questão de salientar. Parece que às mulheres a amizade representaria um tipo de amor mais elevado, que solidificaria os laços da união: Nos romances comerciais, o amor se origina da paixão sexual, enquanto que no slash ele se origina da amizade; os protagonistas do slash eram camaradas muito antes da cair o véu de seus olhos e eles se darem conta da existência de um amor mútuo. Na ficção slash, uma amizade profunda, leal e testada – desenvolvida na completa ausência de atração sexual – é a pedra fundamental sob a qual é erigida a superestrutura do amor romântico, da paixão sexual e do acasalamento permanente76 (grifo dos autores). 74 A. Fanfic na universidade. 2010 75 L.A. Fanfic na universidade. 2010 76 In mainstream romances love originates in sexual passion, whereas in slash it originates in friendship; slash protagonists were comrades long before the existence of mutual love. In slash fiction a deep, abiding and tested friendship – developed in the complete absence of sexual attraction – is the rock-solid foundation upon which is erected the superstructure of romantic love, sexual passion and a permanent mateship. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 93. 141 No caso do fandom potteriano universal, o slash muitas vezes se origina de uma inimizade testada e aprovada no canon original. Arquiinimigos caem nos braços um do outro apenas depois de terem tentado se matar mutuamente. O dito popular “quem desdenha quer comprar” parece ser o mote dessas histórias de caráter angst, em que sentimentos contraditórios lutam no interior dos personagens até que o verdadeiro amor se estabeleça, culminando geralmente numa cena de redenção sexual. Mas há, também, histórias em que o final é decididamente infeliz, comuns no shipper Sirius/Snape, dentre outros. Mesmo após o ato sexual o ressentimento permanece e, como normalmente essas histórias se passam antes da conclusão da série, ou seja, a guerra entre as forças do Bem e do Mal está em pleno andamento, os protagonistas retornam as suas posições de origem, sem que ninguém saiba o que se passou entre eles. Quanto à ideia de “completa ausência de atração sexual”, também esse elemento não é inusitado no fandom potteriano. Longas descrições do que se passa na mente de um protagonista enquanto observa o corpo daquele que deseja, seja jovem e mesmo franzino como o do adolescente Harry Potter ou marcado pela guerra como o de Severus Snape, não são difíceis de encontrar. Finalmente, os autores acreditam que a necessidade de conflito para a realização do drama amoroso, parte do romance formulaico, é inerente ao slash, uma vez que dois homens heterossexuais têm que superar suas “barreiras psicológicas e sociais para reconhecer, aceitar e consumar seu amor”77 Tal nível de comprometimento pessoal resultaria, necessariamente, na construção de um amor de longa durabilidade e mútua completude. Essa seria, na visão dos pesquisadores, a maior motivação das mulheres para o envolvimento com a fan fiction slash. 77 [...] psychological and social barriers to recognize, accept and consumate their love. SALMON; SYMONS, Warrior lovers, p. 94. 4 O ROMANCE COR DE ROSA E O SLASH - ESTUDO DE CASO Sem termos a pretensão de realizar uma pesquisa de porte amplo capaz de apresentar resultados significativos no que tange à checagem das teorias de Symons e Salmon – que demonstram grande proximidade entre o romance cor de rosa e o slash – apresentamos neste capítulo o estudo de um caso. Trata-se de uma incursão irresistível em tal teorização, inevitável mesmo para os leitores tanto de um quanto de outro subgênero, que venham a tomar conhecimento dela. Tratamos então, de acolher nossa curiosidade e pô-la no papel. Escolhemos um romance da editora Harlequin para cotejarmos junto a uma fanfiction slash nos seguintes quesitos: descrições explícitas das atividades sexuais; protagonistas andróginos; mudanças do ponto de vista/identificações múltiplas e relações de amor igualitárias. Esses quesitos foram agrupados por Symons e Salmon como definidores da fanfic slash, com base na observação de teorizações promovidas por outros autores e mesmo por fãs. Ao invés de procurarmos a aproximação da fanfic slash com o romance cor de rosa com base nas caraterísticas desse, resolvemos propor o contrário. Em primeiro lugar gostaríamos de comprovar a existência de tais quesitos em uma fanfic realmente popular e, em segundo lugar, observar sua existência ou não, em um romance sentimental igualmente popular. Voltamos a salientar que se trata da análise de um romance e de uma fanfiction apenas e não nos será possível tecer generalizações acerca de todo o universo fanfiqueiro potteriano slash apenas com base nesse cotejamento. Ainda, optamos por transcrever trechos razoavelmente longos de ambas as ficções, tencionando melhor exemplificar nossa compreensão à luz da teoria anteriormente exposta, uma vez que, possivelmente os leitores desta tese não seriam habituados a ler essas ficções. A editora Harlequin foi a escolhida por ser, juntamente com a editora Nova Cultural, líder de mercado no Brasil em vendas de romances sentimentais.1 Dentre os títulos mais vendidos no site da editora escolhemos o volume intitulado Teias da paixão, da Coleção Jessica, contendo duas histórias com cerca de 150 páginas cada. A escolhida para a realização desta análise intitula-se Virada do destino e é de autoria de Kim Lawrence. Não houve nenhuma preferência de nossa parte por essa história em detrimento da outra e sua escolha deu-se simplesmente por ser a primeira no livro, sem que tenhamos sequer lido a história seguinte. De qualquer forma, seria plausível acreditarmos que a escolha da primeira história 1 MEIRELLES, Romances com Coração, p. 96. 143 em um volume de contos se deva a sua qualidade e as possibilidades de empatia com o prospectivo leitor, uma vez que normalmente as primeiras páginas de um livro são decisivas para determinar a compra ou não de um exemplar. No caso do slash não haveria como utilizar o critério de história “mais vendida”, uma vez que se trata de produções sem fins lucrativos. Mas, como por trás da ideia de vendas se encontra a aceitação de uma obra pelo público consumidor de determinado gênero literário, escolhemos uma fic muito recomendada no Potter Slash Fics, postada também no fanfiction.net onde recebeu um altíssimo número de reviews, 1.735. Trata-se de Green Eyes de autoria de Amy Lupin2, uma fic com 30 capítulos e cerca de 500 páginas impressas em Word for Windows, fonte padrão, tamanho 12. A fic está escrita em português, embora o título esteja em língua inglesa por ser o nome de uma música utilizada para ambientar determinadas passagens da história a exemplo das SongFics, nas quais uma música serve de mote para o conto. A classificação da fanfic dentro dos padrões adotados pelo fanfiction.net é T, ou seja recomendada para adolescentes com mais de 13 anos de idade, podendo conter alguma violência, linguajar chulo e temas considerados adultos, porém em menor intensidade3. Em Virada do destino, o conto erótico publicado no romance cor de rosa, a trama é bastante simples e, em nossa opinião, um tanto quanto formulaica ao modo Cinderela, como soi acontecer nesse tipo de romance. Uma jovem de 24 anos de idade, inglesa, adotiva, virgem, encontra jovem espanhol de família milionária, famoso nos tablóides como playboy, com larga experiência sexual. Apaixonam-se apesar das diferenças e vivem felizes para sempre, com direito a casamento, filhos e vida sexual apimentada. A moça, chamada Maggie, está em viagem de férias e no fundo procura por compromisso, embora uma amiga a tenha incentivado a aproveitar a viagem para viver uma aventura romântica passageira. Prova de seu desejo de casamento é que esteve noiva durante muitos anos de um homem com ambições políticas – que vimos a compreender ser homossexual – que se beneficiava da imagem conservadora oferecida por um noivado. O fato de ele não fazer sexo com ela parece não ter sido motivo suficiente para Maggie romper a relação, da qual apenas saiu frente à insistência do noivo para que procurasse sua mãe biológica que, segundo o noivo havia pesquisado, estaria casada com um homem de 2 FANFICTION.NET. Green Eyes. Disponível em: . Acesso em: 13 jan. 2011. 3 Suitable for teens, 13 years and older, with some violence, minor coarse language, and minor suggestive adult themes. FICTION RATINGS. Fiction Ratings. Disponível em: . Acesso em: 14 jan. 2011. 144 tradicional e abastada família espanhola e cujo reencontro poderia gerar publicidade favorável. A família adotiva de Maggie é descrita apenas o suficiente para deixar claro à leitora sua abnegação e total dedicação à mãe, que sofrera um acidente quando Maggie era apenas uma menina e ficou confinada a uma cadeira de rodas. Embora depois saibamos que a moça mora sozinha, as primeiras páginas dão claros indicativos dos seus cuidados não só para com a mãe, mas para com o pai e os irmãos também. Para compor o quadro de “anjo que caiu do céu”, nas palavras de seu futuro amante espanhol, Maggie é apresentada como enfermeira num hospital público no turno da noite, onde inclusive já foi agredida por um bêbado. Já Rafael, o playboy milionário espanhol, tem muitas amantes e certa aversão à ideia de compromisso. No entanto, ele também é apresentado como empresário de visão que salvou os negócios da família a qual também é dedicado. Seu relacionamento superficial com as mulheres fica justificado não pela necessidade de sexo em si como seria em uma ficção da pornotopia, mas, sim, pelo abandono da mãe que foi embora do lar enquanto ele ainda era pequeno e pelo péssimo relacionamento com o pai. Na romantopia, o interesse por sexo de parte dos homens é desejável, mas ele abdicará da variedade em nome do encontro amoroso com a parceira ideal, que será uma mistura de sensualidade e devoção. Ela encarnará a figura materna, enquanto cuidadora dele e das crias do casal, ao mesmo tempo que estará sempre disposta e convidativa ao sexo, absolutamente monogâmico. O encontro entre Rafael e Maggie ocorre em frente ao hotel onde está sendo realizada a festa de aniversário de seu sobrinho, filho de seu primo Alfonso e de Angelita, que vem a ser a mãe biológica de Maggie. Tudo não passa de uma grande coincidência, mas Rafael, ao ver Maggie do outro lado da rua, reconhece nela a os traços de Angelita e acredita que ela pretende confrontar a mãe bológica, o que arruinaria seu casamento com Alfonso, uma vez que este desconhece o fato de a esposa ter tido uma filha ainda adolescente e a colocado para adoção. Determinado a impedir as más intenções de Maggie, Rafael a leva para jantar e através de peripécias em que a coragem e o bom coração da moça ficam evidenciados, se envolve sexualmente com ela. Após breve separação, durante a qual a moça enfrenta novos perigos com destemor e compaixão e acreditando estar ela grávida, Rafael a procura e a sua família e a pede em casamento. A cena final é a festa do batizado do primeiro filho do casal, realizada na mansão onde residem, na Espanha, com ambas as avós presentes, sem nenhum tipo de conflito familiar. O 145 casal, ainda muito enamorado, troca juras de amor eterna e “foge” da festa para fazer sexo no quarto. A fanfiction Green Eyes também trata de um clichê, o amor impossível, mas, como toda a fic, não começa do zero, já contando com a total simpatia do leitor pelo enredo e pelos personagens previamente existentes em seu imaginário. Em virtude de termos grande proximidade com os personagens escolhidos para protagonizar a fic, uma vez que um leitor de fanfic é quase que necessariamente um fã do original no qual ela se baseia, não há necessidade de grandes elaborações sobre seu passado. Mesmo assim, sendo Green Eyes uma fic do gênero UA, ou seja, Universo Alternativo, adequações são feitas ao passado dos personagens como o conhecemos. O universo alternativo em questão é o nosso mundo, tendo a autora optado por ignorar a existência do mundo mágico como descrito nos livros da série Harry Potter e desprovendo os personagens de qualquer poder mágico. Há dois shippers, ou seja, dois casais românticos cuja relação desabrocha no decorrer da história. O primeiro e principal é Draco/Harry, cuja inimizade vem desde o tempo do colegial e que agora se encontram na faculdade, no mesmo time de vôlei. O shipper secundário e menos dramático, uma vez que unidos por uma longa e sólida amizade, o oposto de Draco e Harry, é Sirius/Lupin. Procuraremos nos centrar no shipper principal, uma vez que é ele que fornece a dramaticidade necessária à construção do romance. Draco é descrito como rico e solitário, um rapaz aparentemente esnobe que na verdade faz tudo para agradar ao aristocrático pai, Lucius. Este, infelizmente, nunca reconhece seus esforços como suficientemente bons e o estimula a manter a inimizade com Harry, cujos pais odiava. Atraente para as garotas, Draco tem uma namorada, Pansy, que não ama, amigos que considera estúpidos e uma mãe ausente. Já Harry é descrito como o bom moço, esforçado, atleta nato, gentil com todos e retraído. Teve uma única namorada, Ginny, irmã de seu melhor amigo, Ron, e embora as garotas procurem seduzi-lo foge de qualquer possibilidade de relacionamento amoroso. Vive apenas com seu padrinho, Sirius, num ambiente harmônico e amoroso. Para que a relação amorosa entre Draco e Harry se estabeleça, a autora recorre a um artifício tecnológico bem atual, o relacionamento virtual. O primeiro passo para garantir que tamanha inimizade se transforme numa possibilidade amorosa, é superá-la a ponto de transformá-la em confiança mútua, uma característica fundante da maioria das fics e já estabelecida no shipper secundário, como citamos anteriormente. Então Draco e Harry se encontram num chat virtual, através de nicknames, onde estabelecem uma relação amistosa, de respeito mútuo e admiração, até que Draco venha a descobrir que o Anjo (nickname de 146 Harry) com quem conversa e desabafa é, na verdade, seu arquiinimigo. Mesmo assim ele se sente incapaz de terminar a relação e é cada vez mais atraído pela personalidade do outro, cujas características passa a examinar sob novo ângulo, mais desarmado. Natalie, sua secretária na empresa do pai, faz o papel materno e o auxilia nessa transição, de obsessão por Harry baseada no ódio à paixão. É doloroso para Draco admitir que se sente atraído por Harry e há um grande conflito interno que este se vê obrigado a enfrentar antes de ter condições de encarar a tempestade externa, ou seja, a inevitável rejeição do pai e a situação de pária social, que acredita ser seu único caminho. Há, ainda, a incerteza sob os sentimentos de Harry que, embora não se interesse por nenhuma garota, também não parece propenso a se relacionar amorosamente com nenhum rapaz, muito menos com Draco Malfoy. Como ambos estão no mesmo time de vôlei e são ameaçados de expulsão pela treinadora caso não parem de brigar, Harry propõe uma trégua a Draco. Assim, os dois passam a se encontrar mais frequentemente para treinar e a amizade virtual se solidifica no mundo real. Harry propõe a trégua a Draco com sinceridade, pois não deseja ser expulso do time. Por outro lado está se sentindo muito solitário uma vez que seus melhores amigos, Ron e Hermione, estão namorando e que seu padrinho e seu professor preferido, Sirius e Remus, também estão. É incapaz de compreender porque rejeita todas as garotas que tentam se aproximar dele e fica feliz com a amizade virtual do Príncipe Slytherin (nickname de Draco). Ao se aproximar de Draco Malfoy também passa a observá-lo sob outro ângulo, menos agressivo, a admirá-lo e a sentir falta de sua companhia. Harry passará por seus próprios méritos numa seleção, proposta por Draco, para trabalhar na empresa de Lucius. Draco enfrentará o pai em mais de uma ocasião para defender Harry e o laço de confiança entre dois é firmemente alicerçado. A última cena é o casal Draco e Harry saindo para jantar em comemoração de seu primeiro ano de namoro, olhando-se longamente e trocando juras de amor. Draco fora de moto apanhar Harry em sua casa, onde se encontram com Hermione e Ron que já aceitam esse relacionamento sem maiores animosidades e onde Remus e Sirius residem, perfeitamente felizes com uma ninhada de cachorros nascidos há pouco. É interessante observar que ambos os rapazes se encontravam solitariamente “no armário”, como se diz em linguagem cotidiana sobre aqueles que não perceberam ou não assumiram sua orientação sexual. Da mesma forma o par romântico secundário até o momento da aceitação de seus sentimentos, os meninos parecem ter optado por não 147 corresponder aos seus desejos sexuais, vivendo quase que como celibatários e evitando a vida social. Não há nenhum elemento anterior ao apaixonamento que faça referência a dúvidas dos garotos acerca de sua sexualidade. Trata-se, portanto, de um first time scenario, ou seja, uma fic sobre a primeira vez de um homem com outro homem, um clássico dentre as fanfics slash, muito comuns na era Star Trek – Jornada nas Estrelas. Como toda a fic desse tipo, longas são as cenas de angústia do apaixonado frente a seus próprios sentimentos e ao temor de ser descoberto e rejeitado pelo objeto de sua paixão, o que também a insere no subgênero chamado Angst, de angústia. Comecemos por analisar as descrições explícitas de atividades sexuais, elemento marcante da fanfiction segundo Symons e Salmon. Em Green Eyes (uma clara referência a cor dos olhos de Harry) não há sexo explícito. Imaginamos que haja a possibilidade dessa ausência ser um pouco frustrante para a leitora, depois de atravessar tanta angústia e desentendimentos entre os rapazes sobre a verdadeira natureza de seus sentimentos. Há cenas em que os corpos dos rapazes se tocam, desde um simples toque de mãos que buscam juntar a mesma caneta caída no chão até uma pequena encenação de luta dentro da piscina, na qual a autora eleva a tensão sexual mas adia o clímax com base nas contradições internas dos personagens. Exemplificamos com um trecho da cena na piscina, onde podemos observar a abundância de descrições emocionais e a quase que total ausência de referência ao estado de excitação física dos personagens: 148 Ambos emergiram puxando ar com força e se atracando novamente, um tentando afundar o outro ou trançando suas pernas para fazer o outro cair, até que Harry empurrou Draco contra a parede da piscina, prensando suas costas nela com todo o seu corpo colado no dele. O mundo parou de girar, o chão fugiu de debaixo de seus pés, o estômago de Draco deu uma pequena fisgada e o tempo parou de correr. Harry segurava os ombros de Draco e tinha os próprios braços sendo firmemente segurados de volta. Ambos se encararam de muito perto, os narizes quase se tocando, os óculos de Harry meio tortos no rosto, cabelos escorridos e encharcados, tórax subindo e descendo descompassadamente, corações palpitantes. Os apertos das mãos diminuíram e as palpitações só se intensificavam conforme eles se encaravam olho-no-olho por milésimos de segundos que pareceram eternos. Não havia mais nada além de Harry. Ou pelo menos nada que importasse mais do que o contato de seus corpos, a respiração que tocava sua face, o martelar quase doloroso de seu coração. Se Harry não o estivesse prensando contra a borda da piscina, o loiro certamente já teria escorregado. Draco podia focar uma íris verde de cada vez, perdendo-se na intensidade daquele olhar, naquela boca entreaberta, buscando por quantidades maiores de ar, os lábios escurecidos por causa da água gelada. Harry o estava torturando, só podia ser! O loiro já não se continha mais. Estava prestes a cerrar completamente os olhos e vencer a distância quando eles ouviram um barulho metálico e Harry deu um pulo para trás, arregalando os olhos4. A completa ausência da menção a ereção que ambos Draco e Harry teriam que estar vivenciando naquela situação – e que evidentemente sentiriam no corpo do outro, o que dissiparia suas dúvidas acerca dos sentimentos ou, no mínimo, do desejo sexual do objeto de sua paixão – é um pouco perturbadora, em nossa opinião. Compreendemos que possivelmente se trate de um mecanismo de projeção feminina, de forma que a autora talvez veja a si no papel dos personagens e, sendo o desejo feminino não tão evidente e perceptível como o masculino, tal elemento tenha lhe passado despercebido. Em nenhum momento anterior da história foi feita menção específica à ereção de qualquer dos personagens, mesmo do shipper secundário. Expressões como “calor que lhe descia pelos quadris” foram utilizadas, mas mesmo quando Harry divide a cama com Draco e esse adormece abraçado contra o corpo do outro não há menção à ereção. Detalhes caros a romantopia se fazem presentes, como o perfume da pele do objeto de desejo, a qualidade e o aroma de seus fios de cabelos, mas nada que remeta, ainda que minimamente, ao sexo desenfreado da pornotopia, substituído aqui por abraços românticos, um beijo suave e a eterna contenção do desejo: 4 FANFICTION.NET, Green Eyes, 2011. 149 Incapaz de se conter, Draco deslizou para mais perto, entrando debaixo do lençol também e se aproximando, até que seu corpo se encaixasse às costas de Harry. Ora, por que ele devia continuar se contendo, afinal? Estava claro que ele não conseguiria sobreviver a essa amizade quando queria muito mais do que isso. Estava mais do que na hora de fazer alguma coisa. Bem, não naquele momento, obviamente. Mas no dia seguinte ele faria. Estava cansado de se torturar deliberadamente. Se não se arriscasse, nunca saberia se Harry o queria ou não. Draco envolveu-o com um dos braços e apoiou a cabeça lentamente no travesseiro, com o nariz enterrando-se nos cabelos negros e macios. O coração de Draco estava desenfreado e ele agradeceu à chuva por abafar as batidas audíveis. Draco inspirou o aroma que se desprendia dos fios sedosos e reconheceu o cheiro de seu xampu. Em seguida, inclinou a cabeça de modo que seu nariz quase tocou a pele desnuda do ombro do outro garoto. Reconheceu o aroma do sabonete que Harry tinha usado. Era incrível como os perfumes mais suaves pareciam grudar naquela pele. Seus dedos buscaram pela mão de Harry até encontrá-la e ele colocou sua mão sobre a dele, acariciando-o. Sem que percebesse, Draco já tinha encostado seus lábios na pele do ombro do moreno, pousando um beijo quase tão suave quanto o toque do lençol sobre a pele de ambos. Voltou a encostar a cabeça no travesseiro e reduziu qualquer espaço mínimo que o separasse do outro, apertando-o contra si. Se estivesse acordado, Harry com certeza sentiria seus batimentos cardíacos contra as costas. Harry suspirou em meio a seu sono e Draco fez o mesmo, com um sorriso intrometido nos lábios. Adormeceu, embalado pela respiração calma de Harry e pelo barulho gostoso da chuva5. Harry acorda na manhã seguinte, fica feliz ao sentir o corpo de Draco grudado ao seu e, novamente, nenhuma referência à ereção é feita, muito embora esteja escrito que “a mão de Draco tocava levemente seu estômago e as pernas do loiro estavam emboladas entre as suas próprias”6 e que mesmo depois de acordar os rapazes não tenham buscado maior distância física imediatamente. Acreditamos que tamanha proximidade física de seu objeto de desejo sem nenhuma tentativa de aproximação, nem sequer uma ereção, não é um comportamento comum para um homem excitado, em plenos 21 anos de idade, ainda que completamente apaixonado. Quando o primeiro ansiado beijo entre os dois finalmente acontece, podemos perceber como o texto está mais focado nas emoções dos personagens e em tudo o que aquele beijo significa em termos de desejo represado por uma longa espera. As sensações físicas são descritas em linguagem bastante feminina e romântica, como a ideia de “seres esvoaçantes” no estômago. Novamente, nenhuma menção direta a qualquer ereção. Esse trecho, parcialmente reproduzido aqui, lembra muito cenas semelhantes escritas para romances sentimentais, em linguagem e comprimento, uma vez que o beijo é ricamente descrito em detalhes e, surpreendentemente, não leva ao sexo propriamente dito: 5 FANFICTION.NET, Green Eyes, 2011. 6 Ibidem, 2011. 150 O tempo parou enquanto ele experimentava milhares de sensações em um absurdamente curto espaço de tempo. Alguma coisa quente jorrou em suas veias, seres esvoaçantes se agitaram em seu estômago, ele estava prestes a perder o controle sobre as próprias pernas e sequer se lembrava de como respirar. Querendo aproveitar ao máximo a falta de reação do moreno – talvez por conta do choque – Draco soltou o lábio inferior e partiu para o superior, respirando nesse intervalo. Quase sem poder se suster de pé, Draco deixou que seu corpo se apoiasse no dele por completo, causando mais uma onda de contentamento em seu corpo. Deslizou as mãos para os cabelos do outro, querendo aproveitar cada sensação, a maciez daqueles lábios a textura levemente áspera da pele daquele rosto masculino e belo, o toque suave dos fios de cabelos deslizando por sob seus dedos. Draco respirou brevemente uma vez mais e lambeu aqueles lábios, ávido por sentir mais, por provar mais, por sentir seu gosto e voltou a beijá-los. Sentiu-se trêmulo quando percebeu a reação hesitante de Harry, que pressionava seus lábios de volta nos dele. Oh, aquilo era o que faltava para Draco perder o controle completamente. Tomou aquela boca inteiramente na sua com vontade, com sede, como se sua vida dependesse disso. Imediatamente, Harry correspondeu ao beijo, entreabrindo os lábios para recebe-lo. O toque de suas línguas fez com que ele experimentasse um pulso elétrico percorrendo todo o seu corpo. Sentiu, extasiado, Harry levando as mãos até suas costas com toques tão suaves que chegavam a ser torturosos, deixando sua pele formigando conforme ele a tocava por cima do tecido da camiseta. Draco inclinou a cabeça mais para o lado de modo que pudesse ir mais fundo, exigir mais daquela dança. Seu corpo todo urgia pelo do outro, com saudade, viciado no contato, protestando por eles terem sido separados logo pela manhã... Draco extinguiu qualquer espaço entre eles7. Mesmo a presumida primeira relação sexual entre Draco e Harry, ardentemente aguardada pela leitora depois de no mínimo 28 semanas de crescente expectativa (esse encontro acontece no vigésimo oitavo capítulo de uma fic de trinta capítulos, postada a princípio semanalmente e, mais tarde, em espaços maiores de tempo), não é descrita em pormenores. Na verdade, no corpo da fanfiction propriamente dito, essa cena não é descrita a não ser em suas preliminares. “Meia hora depois de entrar, Draco deixou o Gol prateado discretamente e seguiu sorrindo até sua BMW”8, é a frase que deixa à imaginação da leitora o que se passou depois de os rapazes terem começado a se beijar ardentemente. Pode ser um pouco decepcionante, a princípio. No entanto, ao final do capítulo, na parte em que comenta as reviews recebidas (porque há um permanente diálogo entre a autora e as leitoras, capítulo à capitulo), Amy Lupin tem uma surpresa reservada: 7 FANFICTION.NET, Green Eyes, 2011. 8 Ibidem, 2011. 151 Bem, agora um simples comentário sobre aquela cena do carro (que por acaso foi uma das que eu me empolguei na hora de escrever). Se você acha que está perfeito assim, que prefere imaginar o que aconteceu, ótimo, pode dormir sossegado, eu não vou estragar seus melhores sonhos sobre o que se passou dentro do carro de Harry entre os dois lindinhos. Agora... se você está quase arrancando os cabelos para saber TUDO o que realmente aconteceu, eu sugiro que você procure pela fic "Censurado" no meu profile. Eu e minha beta querida chegamos a um consenso de que não é justo mudar a classificação da fic logo agora, mas minha imaginação não se sentiu intimidada com isso e acabou saindo um lemon, sim. Por isso passou a ser um "extra" da fic, ok? Só não esperem demais dele... já aviso que ficou bem sutil.9 O capítulo mencionado está, na verdade, num segundo perfil da autora, sob o Nick Amyzita. Está classificado como M10, o que significa ser inadequado para crianças e adolescentes abaixo dos 16 anos por conter temas adultos, embora não completamente explícitos. Ao ler o capítulo ficamos sabendo que, na verdade, o que se passa dentro do carro de Harry é o primeiro orgasmo conjunto dos rapazes, mas não uma relação sexual completa: Então, enquanto Draco acariciava toda a extensão das costas do moreno desimpedidamente, entregou-se à sensação de Harry roçando o próprio corpo de encontro ao seu, as mãos espalmadas no banco, sustentando parte de seu peso conforme se movimentava. Draco deixou as mãos descerem ainda mais e deslizarem por dentro do jeans do outro garoto, acariciando os músculos firmes e pressionando ainda mais seus quadris, de modo a obter maior contado. Foi a vez de Harry grunhir e abandonar seus lábios. Draco não podia condená-lo por isso, pois também estava achando dificuldade em respirar. Harry encostou o rosto em seu pescoço, aumentando o ritmo e Draco encarou o teto do carro por um momento, mas logo fechou os olhos, incapaz de se segurar por muito mais tempo. O loiro sentiu o mundo se dissolver em cores por trás de suas pálpebras quando espasmos percorreram todo o seu corpo e sufocou um grito, segundos antes de Harry fazer o mesmo, arqueando as costas e finalmente largando seu peso totalmente no corpo abaixo do dele11. Ao que tudo indica, Draco e Harry ejacularam enquanto vestidos, o que seria um assombro – sem contar o incômodo – caso essa história fizesse parte da ficção erótica gay ou masculina. Não há, apesar de a autora ter classificado o capítulo como Lemmon, uma referência explícita à ereção, à ejaculação e sobre como resolver a situação do esperma derramado sob a roupa. Sabemos apenas que ambos estão felizes e que Draco caminha, naturalmente provavelmente, sorrindo até o seu carro. Com base nesse capítulo 9 FANFICTION.NET, Green Eyes, 2011. 10 Not suitable for children or teens below the age of 16 with possible strong but non-explicit adult themes, references to violence, and strong coarse language. FICTION RATINGS, Fiction Ratings, 2011. 11 FANFICTION.NET, Op. cit, 2011. 152 permaneceríamos sem saber como se definiriam os papéis ativo e passivo na relação. No entanto, sob o título Censurado, encontram-se cinco capítulos que a autora não ousou postar em Green Eyes. Neles há uma cena de sexo entre Sirius e Remus em que o passivo – Remus, no caso – e o ativo são definidos e, finalmente, a aguardada cena de sexo explicito entre Draco e Harry, no último dos cinco capítulos, intitulado Como distrair seu namorado: Com o coração acelerado de desejo, antecipação e ansiedade, Draco tornou a espalhar lubrificante em Harry só para garantir. Ficou de quatro sobre Harry, segurando-o em uma das mãos e se posicionando. Respirou fundo. Sua determinação e seu próprio corpo diziam claramente que ele estava pronto. - Draco...? – Harry levantou a cabeça do travesseiro, como se pudesse questioná-lo com o olhar, mas então, quando Draco começou a se abaixar lentamente, o moreno jogou a cabeça para trás, ofegando. Draco ouviu Harry gemer um longo 'hmmmmmm'. Draco fechou os olhos bem apertados, por isso não viu quando Harry soltou o nó frouxo com que Draco o prendera na cabeceira da cama e segurou seus pulsos com força. Mas Draco não o impediu. O loiro entrelaçou os dedos nos de Harry, sentindo o próprio corpo relaxar novamente e olhou para o moreno. Os olhos ainda vendados, o peito subindo e descendo rapidamente, os lábios partidos e secos sendo umedecidos pela língua. Iniciou um subir e descer lento. Draco observou a boca de Harry formar um "O" de puro deleite enquanto a dor o abandonava lentamente, permitindo que sentisse as ondas de prazer que começaram tímidas e foram aumentando a intensidade gradativamente. Guiou a mão do namorado, que parecia completamente perdido em sensações, indicando onde queria ser tocado e foi sua vez de ofegar e tremer. Draco puxou o ar através dos dentes cerrados, surpreso e encantado com o que sentia, aumentando o ritmo das investidas.12 Podemos observar que a autora não esqueceu o uso de lubrificante na relação sexual dos rapazes e a cena parece bem mais próxima da realidade, sem tanto espaço para a descrição das emoções de ambos. Curiosamente, a autora deixou o seguinte recado às leitoras: N.A.: Agora, essa cena deu trabalho pra escrever... afff Desde o início eu sabia que o Draco ia ser passivo, simplesmente por não conseguir mais esperar alguma iniciativa de Harry. Sem contar na curiosidade que ele sentia. E ele acabou fazendo a própria cabeça. Eu diria que não se arrependeu uhuahuahua Mas também não acho que Harry vá aceitar ser sempre o ativo XD Enfim... FELIZ 2011!13 12 FANFICTION.NET. Censurado. Disponível em: . Acesso em 20 jan. 2011. 13 Ibidem, 2011. 153 Já em Virada do destino a cena de sexo entre os protagonistas não demora tanto a acontecer e aparece já no nono capítulo da história, que é dividida em dezoito capítulos. Não há tanto retardamento na entrega ao sexo por parte dos protagonistas como em Green Eyes, mesmo de parte da virgem, e quando ocorre o primeiro beijo imediatamente este evolui para a relação sexual. A descrição do ato sexual nos parece ser tão explícita quanto a da fanfic e, da mesma forma, romântica, sem o uso de termos chulos ou mesmo a nomeação dos órgãos sexuais (vagina, por exemplo, é referida como “suavidade sedosa”) e nenhuma menção direta à ereção propriamente dita, aqui substituída por “excitação viril”. A apresentação dos mesmos elementos caros a romantopia, como cheiro da pele e longos beijos sensuais, são utilizados para aumentar a tensão sexual e preparar a leitora para o clímax da relação sexual: O olhar sedento de Rafael quebrou os últimos vestígios do controle de Maggie. Com o rosto vermelho e os olhos brilhando de paixão, ela abriu mais as pernas e sussurrou: - Rafael, eu preciso de você dentro de mim. Então lá estava ele, e Maggie percebeu que não chegara nem perto de imaginar como poderia ser maravilhosa a sensação de Rafael pulsando em seu interior, preenchendo-a. Ele registrou a abertura estreita e o grito de Maggie quando a penetrou, e demorou alguns segundos para que seu cérebro unisse as duas coisas e produzisse a explicação. [...] Quando a primeira onda de orgasmo a atingiu, Maggie gritou. Jogando a cabeça para trás, agarrou-se a ele enquanto novas ondas a abalavam, então explodiam numa profunda pulsação de prazer que se espalhou pelo seu corpo inteiro... No momento em que os espasmos começaram a diminuir, ela sentiu Rafael enrijecer e tremer quando o calor de sua liberação a preencheu14. Imaginamos que deve ser menos trabalhoso para a autora publicada pela Harlequin descrever uma cena de sexo entre um homem e uma mulher do que para a autora de slash descrever uma cena de sexo entre dois homens. Ainda assim, os elementos comuns a ambas nos permitem perceber como são femininas ambas as ficções, como estão inseridas na romatopia ao oposto da pornotopia. Esta não será a única cena de sexo entre Rafael e Maggie, mas é praticamente a única a ser tão explícita. Todas as demais iniciam na descrição do longo beijo e de como ambos mal podem se conter fisicamente ao mesmo tempo que se sentem confusos emocionalmente e então corta-se abruptamente para a cena seguinte, depois do sexo: 14 LAWRENCE, Kim. Virada do destino. Teias da Paixão. Coleção Jéssica. Rio de Janeiro: Harlequin Editora, 2010, p. 82. 154 - Agora, querida, faremos isso do jeito que tem que ser feito. - Eu achei que foi bom da primeira vez – admitiu ela, sentindo-se relaxada, embora a consciência sexual permanecesse viva sob sua pele. Ele beijou a pulsação na base de seu pescoço e ela tremeu. - Você não é uma mulher que deve se contentar com “bom” e eu não sou homem que oferece somente isso. [...] Muito mais tarde, enquanto os corpos de ambos ainda estavam aninhados, Rafael esforçava-se para dar sentido a sua relutância de quebrar a conexão física, embora a ânsia sexual por ela tivesse sido saciada... finalmente15. No quesito protagonistas andróginos, tememos não ser possível localizá-los no shipper principal de Green Eyes e, como era de se esperar, não há nenhuma possibilidade de androginia no par romântico de Virada do destino. Ao contrário, acreditamos que Draco Malfoy e Rafael Castenadas possuem elementos em comum. Ambos são descritos como arrogantes, prodigiosos sexualmente, atraentes fisicamente, ousados no mundo dos negócios, milionários e sedutores. Também são frágeis, devido ao péssimo relacionamento com o pai e a total ou relativa ausência da mãe, e disfarçam essa insegurança com maestria, revelando-a apenas para o objeto de sua paixão. Parece-nos quase que uma receita para o estereótipo do macho alfa dos romances sentimentais. Acrescente-se uma nacionalidade considerada “exótica” (Grego? Espanhol? Brasileiro?) e está pronto o macho irritante, mas irresistível, a ser conquistado por uma moça de bom coração. Não há como afirmar com certeza que Harry apresenta características andróginas que necessariamente o qualifiquem como o elemento feminino do casal, uma vez que ele não perde as características que o consagraram no original, como a coragem, a ousadia e a determinação. A estas são acrescidas outras, como habilidade e força física e senso de humor. No entanto, seu “bom mocismo” presente na série de J.K. Rowling também migra para as páginas da fanfic. Da mesma forma que Maggie, há momentos da história em que Harry surpreende Draco por ser verdadeiramente bom, honesto e gentil, quase um “anjo que caiu do céu”. Sua vida sexual anterior a Draco também é bastante modesta, embora não chegue a ser virgem, como Maggie. Acreditamos, dadas essas coincidências, que esses elementos talvez sejam realmente importantes para a caracterização da “mocinha” de um romance romântico e que, em maior ou menor intensidade, possam se fazer presentes também nas fanfictions slash. As mudanças no ponto de vista e identificações múltiplas são usadas pelas autoras de ambos os romances. Na fanfic, a princípio, predomina o ponto de vista de Draco Malfoy, provavelmente porque é ele quem por primeiro se interessa romanticamente pelo outro protagonista. Apenas depois de estabelecido seu verdadeiro sentimento por Harry Potter é que 15 LAWRENCE, Virada do destino, p. 85. 155 a autora começa a usar o ponto de vista deste para mostrar à leitora que de sua parte também há certa atração pelo seu velho inimigo. Em Virada do destino a narração com mudanças no ponto de vista se estabelece desde o início. Observamos os sentimentos de Rafael e de Maggie aflorarem simultaneamente, bem como as desconfianças de um em relação ao outro e as inevitáveis peripécias de desentendimento, facilmente resolvidas através de um diálogo franco em que o amor correspondido é declarado, o que, para bem do enredo, demora para acontecer. Parece-nos que as narradoras das duas ficções poderiam ser classificadas de narradoras oniscientes seletivas, utilizando-se da criação de cenas recheadas de diálogos nos momentos de ação, reservando para si a caracterização dos personagens e desvendando suas mentes aos olhos da leitora, embora sem interferir através de comentários intrusivos feitos a partir de seu ponto de vista. Embora não intrusivas, as narradoras também não são exatamente neutras, uma vez que discretamente, em cenas nas quais o ponto de vista não é de nenhum dos protagonistas, mas sim da narradora, discretamente sua opinião enfatiza elementos que serão importantes na construção que a leitora está a fazer da trama como um todo e da caracterização dos personagens. Ao nos perguntarmos o porquê da opção pela presença de uma narradora onisciente, elaboramos algumas possibilidades. Em primeiro lugar essa decisão pode dever-se, no caso das histórias em questão, a diferentes escolhas, embora não necessariamente tomadas de modo consciente pela autora e capazes de coexistir. Uma delas, pelo menos hipoteticamente, deve-se à crença no desejo da leitora de ter um conhecimento total do que se passa com as personagens, o que levaria escritoras menos experientes, como no caso das autoras de fanfics, e mais ávidas por aprovação e pelo estabelecimento de diálogo (reviews) com suas leitoras, a optar pela narração onisciente. É justo deduzir que a autora da ficção comercializada pela Harlequin possui mais experiência na escrita de romances, mas mesmo assim deseje satisfazer os anseios de suas leitoras – também pouco experientes – ao “facilitar” a leitura. O outro caminho parece um pouco mais complexo. A narração onisciente dos pensamentos de ambas as personagens as coloca em equilíbrio de forças diante do leitor, já que ambas têm seus motivos de ação explicitados. Colocar as personagens em questão no mesmo nível de enunciação pode ser uma tentativa de romper com a associação tradicional e estereotípica entre relacionamentos hetero e homo-afetivos, na qual um desempenha um papel masculino/ativo e outro é feminino/passivo. Desse modo, a autora tentaria resolver questões de poder históricas entre os gêneros ao dar poder a duas personagens igualitariamente, ao 156 mesmo tempo em que motiva o interesse por parte do leitor suspendendo a resolução das afetividades dentro da trama. Assim, abordamos a questão das relações de amor igualitárias, e nos parece é bastante clara a preocupação da autora em estabelecê-la na fic, mas não necessariamente na ficção erótica comercializada. Embora no romance sentimental o protagonista masculino seja o estereótipo do macho dominante, há tentativas, enquanto a união não se estabelece definitivamente, de dar poder à voz de Maggie, não apenas através da narração onisciente, mas ao caracterizá-la como “teimosa”, não obedecendo às ordens de Rafael com facilidade, para espanto e apreço deste. Contudo, no final do romance, a desafiadora Maggie que chegou a dizer ao amante que não aceitaria presentes dele e lhe atiraria de volta sapatos caros se ele ousasse oferecê-los a ela, aceita docemente tudo o que o dinheiro do agora marido possa comprar, deixando, inclusive, de trabalhar como enfermeira, profissão da qual tanto se orgulhava: - Só por curiosidade – acrescentou ele enquanto a erguia nos braços e a fitava com olhos repletos de amor - ... de que tipo de jóia você gosta? Eu aprecio a ideia de rubis em sua pele. Maggie, que apreciava a ideia de Rafael em sua pele, replicu alegremente: - Qualquer coisa que você escolher. - Sem discussão? - Eu? – disse ela, inocente, e então riu da careta dele. – Concordo que posso discordar de você de vez em quando. Mas se todas as nossas discussões acabarem assim, não tenho reclamações.16 Já na fanfiction os protagonistas são colocados permanentemente em nível de igualdade, seja em aspectos físicos, intelectuais ou emocionais. Mesmo suas diferenças em aptidões esportivas são compensadas – Harry joga vôlei melhor do que Draco, mas o último possui o melhor saque – revelando uma permanente preocupação, por parte da autora, de garantir sua equiparação aos olhos da leitora. Trata-se de um encontro de diferentes personalidades, com certeza, mas, sem dúvida, também do encontro de iguais, dependentes um do outro apenas em virtude de sua paixão, que atinge a ambos com a mesma intensidade. O papel de passivo na relação sexual, atribuído a Draco, se passa numa cena em que esse é extremamente ativo, tendo decidido de antemão como se faria o sexo, amarrando seu companheiro à cama, ainda que frouxamente, e vendando-o, colocando-se sobre ele e 16 LAWRENCE, Virada do destino, p. 157. 157 decidindo o ritmo da penetração. Além disso, o recado que a autora deixou para as leitoras acerca dessa cena, no qual inequivocamente deixa entrever que, em sua imaginação, Harry se alternará com Draco nos papéis de passivo e ativo, reforça a importância das relações igualitárias no slash como teorizada por vários estudiosos no assunto: uma reação das autoras e leitoras aos estereótipos determinados para o masculino e o feminino nos romances tradicionais. Assim, numa única fanfic escolhida de forma bastante aleatória (critério de aceitação do público) quase todos os elementos considerados essenciais à construção do subgênero slash de acordo com Symons e Salmon foram encontrados. Surpreendentemente, a nosso ver, os mesmos elementos se fizeram presentes num romance cor de rosa escolhido para o cotejamento apenas com base nesse mesmo critério, a aceitação por parte de seu público leitor, o que não significa uma comprovação total da teorização mas, sem dúvida, instiga a que mais e maiores estudos sejam feitos nesse sentido. CONSIDERAÇÕES FINAIS A realização desta pesquisa nos exigiu um pouco de coragem, como soi acontecer nos trabalhos de temática inexplorada. Algumas superações se fizeram necessárias, como a de nosso próprio espanto frente ao material colhido (não integralmente aqui apresentado) e a de preconceitos de gênero internos e externos – pois não é difícil rapidamente creditar ao slash o rótulo de literatura gay e, não, de literatura erótica feminina. Também tivemos de nos munir de uma abertura pessoal sincera para a aceitação e vivência de fantasias sexuais que até então nos eram desconhecidas, e da aquisição de ouvidos moucos às muitas advertências de que esta não constituía boa temática para pesquisa. Compreendemos que coragem também é um atributo exigido das autoras e leitoras que por este subgênero de ficção erótica se aventuram. Sim, porque a fantasia sexual parece menos incômoda se recalcada e, principalmente, não divulgada, não compartilhada com outros, mesmo enquanto fantasia. Uma vez trazida a público, ainda que restrito, ainda que com a identidade salvaguardada sob pseudônimos, a fantasia será uma experiência de vida – não da realidade concreta, mas do imaginário – e trará alterações perceptíveis à vida de quem com ela se envolver. Não que acreditemos que o recalque seja inócuo, apenas seu efeito é menos consciente. A fanfiction já é, em si, a realização de uma fantasia pessoal: a fantasia da autoria, ou, pelo menos, co-autoria de um universo ficcional pelo qual estamos apaixonados. Ao longo desta pesquisa compreendemos o quão forte a questão da construção identitária é para os fanfiqueiros – não o seria para todos os humanos, independentemente se pelo caminho do lazer ou do trabalho? – e, em especial, para os que se dedicam a subgêneros, poderíamos dizer, marginais como o slash. Tal já seria de esperar em relação a qualquer subgênero das fanfics, mas tomemos o slash, então, e, parece-nos, a questão da identidade compartilhada toma vulto ainda maior. Afinal, se considerarmos o slash como transgressor das narrativas comumente conhecidas, mesmo das narrativas eróticas - e a simples leitura da ficção erótica voltada para o público feminino já é, em si, um ato trangressor para muitas mulheres mesmo nos dias de hoje - compreendemos como os laços entre as autoras do Potter Slash Fics são, muito provavelmente, elementos de grande importância em suas vidas afetivas. Em acreditando, com base nas correspondências lidas, que se tratam de mulheres adultas, mães, trabalhadoras, estudantes e ocupadas com as atribulações da vida adulta, podemos inferir que o envolvimento com a ficção slash - e, por extensão, com o fandom - constitui um exercício 159 de liberdade pessoal que, embora demande tempo, lhes é caro. Isso não causa espanto, uma vez que a literatura sempre foi uma porta de liberdade para as mulheres, inclusive as brasileiras, que em séculos passados tiveram seu direito de ler e de escrever cerceado, não raras vezes tendo de praticá-lo às escondidas. Consideradas as devidas proporções, é possível perceber elementos em comum entre aquela realidade e a escrita e leitura do slash. No primeiro capítulo apresentamos as fanfictions em geral, seu surgimento e evolução, e adentramos na importância da questão identitária para o fanfiqueiro. A identidade autoral, ou, pelo menos, co-autoral pelo preenchimento de lacunas do texto original, a identidade de membro de um grupo que compartilha de suas paixões, a identidade ficcional – como pertencente à Escola de Magia de Hogwarts, em um determinado fandom potteriano – a identidade virtual – que possibilita a revelação apenas parcial de sua cotidianidade e mesmo a fuga desta – cria possibilidades lúdicas, de expansão de horizontes pessoais sem a obrigatoriedade das tarefas cotidianas. Pelo contrário, compreendemos que a construção dessas identidades está associada a oferta de prazer que apenas o entretenimento voluntário dá, ainda que trabalhoso. Nos e-mails reproduzidos ao longo da tese nos pareceu transparecer o orgulho das autoras em relação a sua prática, os elogios tecidos a outras autoras que já se arriscam no mercado editorial e a alegria e cumplicidade que sentem por fazer parte de um grupo com discussões de bom nível, que não apenas compartilha de suas paixões, que não se limitam a série Harry Potter, como oferece novas leituras do original em torno do qual se agrupam, da prática em si e, mesmo, de mundo. Ainda no primeiro capítulo apresentamos uma pesquisa pormenorizada acerca do conteúdo e da organização do maior site depositário de fanfics do mundo, o fanfiction.net. Como pudemos constatar, o site só fez crescer. Com quase três milhões de histórias depositadas em trinta e três idiomas divididos em nove categorias, o site faz jus a chamada que afirma que os autores e leitores de fics ao redor do mundo lá se encontram para compartilhar sua paixão. Harry Potter ainda permanece sendo o maior acervo do site, com quase meio milhão de fics depositadas em diversas linguagens e gêneros, dentre os quais uma grande quantidade de slash. Uma simples pesquisa nos menus de busca do site, bastante sofisticados, confirmaram nossa suspeita de que abundam fanfics slash produzidas pelo fandm potteriano brasileiro. Dessa forma, pudemos constatar que a temática da presente pesquisa não trata de um tipo de ficção erótica feminina produzida por fãs que, no entanto, é um fenômeno que se passa apenas em língua estrangeira, mas, pelo contrário, esse tipo de ficção é mais comum para as fãs brasileiras do que supúnhamos. 160 Outros websites depositários de fanfictions também foram descritos em seus critérios e formas de publicação no primeiro capítulo desta tese, inclusive a biblioteca para fics do site Potterish, denominada Floreios e Borrões. Este site, brasileiro, foi o único da América Latina a receber uma menção honrosa por parte da autora da série Harry Potter, J. K. Rowling, em premiação concedida através de seu site pessoal. No segundo capítulo dedicamo-nos exclusivamente a fanfic do subgênero slash. A fim de constatar que a autoria brasileira em fics slash não é um fenômeno isolado, ou seja, pertencente única e exclusivamente ao fandom potteriano, procuramos listar os campeões de postagem em cada uma das nove categorias disponibilizadas no fanfiction.net. De cada categoria selecionamos os dois títulos com maior número de fanfics e, dentre eles, a presença de fanfictions do subgênero slash escritas em língua portuguesa do Brasil. Apenas sob dois títulos – Star Wars na categoria Movies e a peça Wicked na categoria Plays/Musicals – não constatamos a presença de fics slash em português brasileiro, ou seja, presumidamente escritas por autores (ou seriam apenas autoras?) brasileiros. Parecem-nos evidencias bastante fortes da opção pela escrita de slash entre fanfiqueiros brasileiros e claramente Harry Potter o único original que os instiga. Não seriam poucas, a julgar pelos números por nós compilados, as brasileiras envolvidas com a fanfiction slash para além do fandom potteriano. Elas teriam se deparado com esse tipo de ficção nos fandons internacionais on line e decidido, elas também, “ver o que eram capazes de produzir”, para fazer uso das palavras de Jenkins. Bem, tudo indica que são capazes de produzir muito e com cores nacionais. Buscam atingir um público mais amplo que o do grupo, postando suas fics em diferentes sites, nacionais e estrangeiros e sofrem com a perda de arquivos voltados especificamente para o subgênero de seu apreço, normalmente por questões financeiras. As que lêem em inglês envolvem-se com o fandom internacional e indicam fics estrangeiras, artes, vídeos, fazem traduções e contribuem, mesmo que involuntariamente, para o esforço transmidiático de divulgação de fics slash, com múltiplas portas de acesso a elas. Acreditamos que essa presença feminina brasileira em tantas frentes ficcionais transmidiáticas de divulgação do slash poderia ser oportunamente registrada em uma pesquisa voltada para tanto, por ser este um tema em franco debate em outras áreas que não apenas a literária. Passamos então a historicizar o surgimento da fanfiction slash, que remonta a relação de amizade e intimidade entre Spock e Kirk, protagonistas do seriado Star Trek. Infelizmente, frente ao crescente interesse de fãs mulheres de Star Trek pelas fics slash, os autores não tiveram todos as mais brandas reações, contribuindo para o sentimento de marginalização 161 daqueles envolvidos com o subgênero, na época. Mesmo atualmente a reação vexatória exacerbada frente a preferência pelo slash apenas serve para reforçar o sentimento de identidade marginal dos membros do fandom, contribuindo para a construção de mais essa identidade, a de pária literário de um lado da moeda e de co-autor ou leitor especialmente ativo, de outro. Procuramos evidenciar a diversidade que atualmente encontramos dentro do slash, como protagonistas femininas e mesmo textos escritos por gays e postados como fanfic slash. Acreditamos que há diferenças significativas entre a ficção erótica escrita por gays e aquela escrita por mulheres heterossexuais, principalmente no que se refere ao predomínio da descrição das emoções sobre o ato sexual propriamente dito, mas compreendemos que uma pesquisa nesse sentido faz-se necessária para estabelecer a presença dessas diferenças e para caracterizar-las. A seguir passamos a exemplificar a presença da fic slash potteriana brasileira na internet que, além da grande concentração no fanfiction.net, é encontrada em muitos blogs pessoais, sites de único autor e outros, inclusive internacionais, como o Live Journal. De modo geral, constatamos que não há um site brasileiro que congregue as fanfics desse subgênero e as autoras brasileiras ficam espalhadas pela rede, congregando-se em mailing lists e grupos como o Potter Slash Fics, ao qual nos filiamos. Algumas autoras de grande produção como Magalud e Ptyx foram usadas como exemplos do funcionamento, em termos genéricos, dos sites nacionais depositários de fics slash potterianas. Da mesma forma que nos sites internacionais, há a preocupação de legitimar a propriedade e a autoria dos originais, reservando a autora apenas o papel de fã que exerce um hobby, sem fins lucrativos. Há, ainda, o intento de avisar ao prospectivo leitor o tipo de texto que ele irá encontrar nos próximos cliques e convidá-lo a sair, caso não aprecie esse tipo de ficção. O Boa Constrictor é um excelente exemplo de site brasileiro de única autora muito bem organizado e visitado. Algumas de suas histórias apresentam um tempero nacional todo especial e dão uma dimensão da liberdade desfrutada pelas autoras de fanfiction que não se prendem ao cânone, que podem, inclusive, deslocar personagens habitantes de lúgubres castelos mágicos em uma chuvosa e fria Inglaterra para uma temporada romântica em praias brasileiras. Imaginamos como deva ser prazeroso brincar com os personagens de sua preferência dessa forma tão criativa. Contudo, a impermanência dos sites, nacionais e estrangeiros, que, quanto mais crescem mais dificultam sua sobrevivência on line por questões administrativas e financeiras, 162 é dolorosa. São várias as histórias de arquivos inteiros perdidos e, com eles, as publicações de várias autoras nacionais. Após algumas tentativas de recolocar os sites on line, não raro essas autoras passam a procurar outros espaços para depositar suas fics e reagrupar seu público leitor. Algumas desistem nesse processo. Terminando o segundo capítulo abordamos um aspecto significativo, em nossa opinião, do entorno fanfiqueiro: as fanartes e os fanvids. Não satisfeitos com a incursão escrita na ampliação e recriação dos originais de sua preferência, os fanfiqueiros constroem seu próprio universo artístico, bastante criativo. Há capas, propagandas e ilustrações de capítulos para as fics slash, como também para as demais. As ilustrações variam em técnica, estilo e explicitude, mas passam a mensagem de romance e erotismo a que se propõem. Curiosamente, não são necessariamente as autoras de fanfics que criam as ilustrações, pelo contrário. Grande parte delas é oferecida por leitoras que se enamoraram do texto e decidiram criá-las e pudemos perceber, em algumas, características marcadamente femininas, embora retratando a relação sexual entre dois personagens homens. Para a nossa mal disfarçada alegria, as fanartes também evoluíram para a arte seqüencial e há inúmeras histórias em quadrinhos na rede, nos mais diversos idiomas, retratando o universo potteriano em temática slash, alguns praticamente hentai. Quanto aos fanvids estes são sobretudo colagens, paródias e alguns frames originais, como no caso do citado James Potter and the Hall of Elders‟ Crossing, embalados por músicas que reforçam o sentido do que estamos assistindo. Extremamente trabalhosos, pois só o garimpo de material para a construção do vídeo consome muitas horas, os fanvids por vezes tornam-se virais para o seu público consumidor, chegando a milhares de acessos no site You Tube. James Potter, o filme é um desses casos muito bem sucedidos. Dividido em cinco partes e veiculado através do You Tube, seu trailer, anteriormente descrito no corpo deste trabalho, já passou da casa dos onze mil acessos no momento em que escrevemos esta conclusão. No terceiro capítulo da tese nos dedicamos a teorização que procura explicar o que motiva a existência do slash. Circula, inclusive nos fóruns internacionais de slash, a hipótese de este ser uma reação contra a hierarquia de gêneros, na qual a mulher é passiva na relação sexual e o homem ativo. Essa hierarquia transcenderia a cama e se refletiria na sociedade, onde o estereótipo de masculinidade como sendo forte, líder e corajosa ecoariam necessariamente na estereotipização do feminino como sendo frágil, seguidor e amedrontado. Esses estereótipos seriam confrontados na fanfic slash, onde há uma preocupação em se criar relações em pé de igualdade entre os amantes. Há teóricos que afirmam não ser a igualdade a questão feminina central para a escrita do slash, mas, sim, uma reação de vingança contra os 163 estereótipos acima expostos, colocando propositadamente homens em situação de perda de poder para deleite pessoal das autoras e leitoras. Por outro lado é mais consistente a ideia de que a tentativa de subversão do patriarcado através do slash acrescente características marcadamente femininas aos protagonistas enquanto amantes não como desforra, mas como projeção de um desejo de encontrar maior abertura às necessidades e sensibilidades femininas, nos homens. Há, ainda, embora pouco explorada, a compreensão de que a fantasia sexual de ver dois homens fazendo sexo é atraente para as mulheres da mesma forma que o oposto é atraente para os homens, e de que esse seria o principal motivo de as autoras se apropriarem de personagens que consideram atraentes para a criação de textos que, se não fosse pelas suas mãos, dificilmente se encontrariam disponíveis para a leitura. Em nossa opinião esse é um dado importante, pois pudemos observar o quanto as autoras e leitoras se deleitam em escolher homens (os atores que representam os personagens são fundamentais nas escolhas) desejáveis para formar os pares e quão acalorado e picante é o debate em torno de cenas de sexo entre esses homens. No entanto, a teorização mais completa já realizada sobre as motivações das mulheres para o envolvimento com as fanfics slash é aquela realizada por Symons e Salmon, que se utilizam da Teoria Evolucionista para explicar padrões de comportamento masculino e feminino em relação ao sexo e, a partir daí, traçar importantes distinções entre a ficção erótica para consumo do público masculino e aquela para consumo do público feminino. Uma vez estabelecida as raízes desta distinção, os teóricos utilizam o conceito de pornotopia – a satisfação do desejo sem qualquer romance e compromisso – para classificar o universo da ficção erótica masculina, e de romantopia, termo cunhado por eles, para o universo ficcional erótico feminino. Na romantopia o sexo é decorrente do amor e o compromisso monogâmico, desejado pelo herói, uma vez que ele se encontra apaixonado. Este seria o caso dos romances sentimentais que, ao seu ver, apresentam grande proximidade do slash. Na verdade os autores chegam a quase que afirmar que o slash e o romance sentimental são idênticos, não fosse o fato de no primeiro os protagonistas pertencerem ambos ao mesmo sexo, preferencialmente masculino. Por que, então, não haveria algumas mulheres de se contentar com a ficção erótica já existente e cujo consumo elevado indica seu sucesso junto ao público feminino? Seria o slash apenas um desvio de comportamento de um punhado de leitoras a ser estudado do ponto de vista médico-psiquiátrico? Não nos parece o caso e aos autores tampouco. Symons a Salmon concluem que a importância dos laços de amizade e da igualdade de condições em que se 164 evolui o romance entre os protagonistas na fic slash é o principal motivo para as mulheres terem migrado dos romances sentimentais para a criação e divulgação deste subgênero. Parece-nos uma boa explicação, mas não podemos deixar de salientar que o prazer voyeurístico de criar ou acompanhar a relação sexual entre dois homens desejáveis é solenemente ignorado pelos pesquisadores. Sem dúvida já lemos fics slash que se enquadram completamente no modelo descrito por estes teóricos, mas também já encontramos outras que diferem. Assim, resolvemos arriscar um pequeno cotejamento entre um romance sentimental qualquer e uma fanfic slash do fandom potteriano, o que fizemos no quarto capítulo. Como critério para escolha, e de forma a garantir que não interferíssemos conscientemente nessa seleção tencionando comprovar um ou outro ponto de vista, utilizamos a aceitação junto ao público leitor. Um romance bem vendido por sua editora foi escolhido como modelo de romantopia e uma fic slash potteriana bem comentada (reviews) por suas leitoras foi escolhida para fazer o cotejamento. Os itens a serem observados foram aqueles selecionados por Symons e Salmon como principais características do slash, embora também presentes em muitos romances sentimentais, a saber, descrições explícitas de atividades sexuais, protagonistas andróginos, mudanças no ponto de vista do narrador e relações de amor igualitárias. O fato é que tanto na ficção erótica comercial heterossexual quanto na fanfiction slash (ficção erótica homossexual não comercializável) todos esses elementos foram encontrados, para nossa surpresa pessoal. Evidentemente isso não significa a comprovação inequívoca de tal teoria, mas traz à luz elementos importantes, que ensejam a realização de pesquisa mais aprofundada sobre o tema. Como nosso critério para a escolha das histórias foi a aceitação do público leitor, não podemos deixar de reconhecer a correção dessa teorização, pois, mesmo que tenhamos lido, por opção pessoal, várias fics slash em que quase não há romantização das relações entre os protagonistas – por vezes nada igualitárias – nem tampouco finais felizes, as fics de grande sucesso junto ao público, como a escolhida para a confecção do capítulo quatro, parecem corresponder àquele modelo. O acréscimo de características femininas aos personagens masculinos com o intento de torná-los mais próximos dos ideais românticos femininos, tão presente no romance cor-de-rosa, fez-se evidente na fanfic slash analisada. O comprometimento monogâmico, a sólida amizade, o companheirismo nas aventuras, a imagem dos amantes apaixonados felizes para sempre, são fortes características da fanfic em questão. Não fosse pelo companheirismo, pela amizade em pé de igualdade, que no romance sentimental é substituído pela submissão feminina ao conforto proporcionado pelo poder 165 financeiro do macho dominante, diríamos que se trata da mesma relação, independentemente dos gêneros daqueles que as protagonizam. Se, realmente, a amizade e a simetria na relação são os principais elementos que, juntamente com a fantasia sexual, atraem as mulheres para as fanfictions slash, cremos que há aí dados importantes sobre como nós mulheres ainda nos sentimos em nossas relações amorosas. Mais de uma vez a literatura tem sido o meio para a expressão feminina acerca de mudanças que já se fazem sentir no horizonte, para anseios femininos pela ocupação de espaços diferentes daqueles reservados à maioria até então. Acreditamos que ainda há muito no slash para ser compreendido e que há muitas vozes femininas se utilizando dessas ficções para construir caminhos que possivelmente não tenham encontrado na literatura comercializada. Quando uma mulher revela suas fantasias sexuais pessoais acerca de um personagem ficcional através do slash, ela não está necessariamente falando apenas de si mesma, mas possivelmente de sua “aldeia”. Essa aldeia, no caso, é global, e as vozes que a constroem não são nada isoladas, embora ainda pareçam distantes da ficção erótica comercializada para as mulheres como um todo. Não cremos que este estado de coisas venha a perdurar por muitíssimo tempo. A própria indústria do filme pornô voltado para o público feminino é um indício de que a fórmula de venda de ficção erótica para mulheres está mudando. Quanto a esta pesquisa que aqui se encerra, e que representa apenas um recorte do universo do slash em língua portuguesa do Brasil, esperamos ter lançado pistas significativas sobre essa temática nova, complexa e extremamente instigante, que é a fanfiction slash. Embora não seja uma pesquisa sobre um assunto tradicional na área de Estudos Literários, defendemos nossa escolha com base na necessidade de nós, participantes do mundo acadêmico, tomarmos conhecimento das produções que se passam nas franjas, nas margens do que estamos acostumados a consumir ou, ao menos, a observar a presença no mercado. A literatura, enquanto espaço ficcional, há muito não está presente apenas no papel e nas mesas dos editores aguardando a possibilidade de vir à luz para então criar para si um público leitor. Existem novos suportes, novos meios de divulgação e uma nova geração ansiosa por compartilhar suas histórias, independentemente da comercialização destas. Esses novos leitores – e não nos referimos apenas a idade cronológica dos mesmos, mas, sim, a forma com que realizam e interagem com suas leituras – ocupam um lugar extremamente flexível na cadeia de criação e consumo de ficção. Ao mesmo tempo que leem, interagem dinamicamente com outros leitores e apresentam seu trabalho na forma narrativa clássica, mas também sequencial, pictórica, em vídeos, e o que mais aparecer disponível como 166 expressão de co-autoria originada da paixão pelo original. Não deve demorar para aparecer games realizados por fãs, com conteúdos fanficcionais. Trata-se de uma forma orgânica e não comercial de transmídia, cujo funcionamento em termos de divulgação é altamente eficiente. A fanfiction, na proporção em que hoje é encontrada, fenômeno destes tempos dinâmicos, parece funcionar dentro de um sistema literário próprio, criado com base na observação dos sistemas não virtuais, os tradicionais. Apresenta gêneros e subgêneros próprios – transgressores, como o slash, tanto em termos temáticos como sistêmicos, uma vez que virtual e não comercial – regras novas para a observação do cânone e um público ávido por participar de um processo que envolve, básica e quase que ironicamente, leitura e escrita. É nossa crença que pesquisas sobre essas novas práticas alicerçadas naquelas velhas habilidades apenas venham a renovar e reforçar os Estudos Literários. REFERÊNCIAS A. Red light district – fic next gen. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 14 de outubro de 2009. A. Tese x imagens. [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por em 14 de janeiro de 2010. ACKMAN, Dan. How Big Is Porn. Management & Trends. Disponível em: . Acesso em 23 out. 2010. ANESTOPOULO, Cat. Darling Zine, TNU 3. August 1990. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2006. BACON-SMITH, Camille. Enterprising women – television fandom and the creation of popular myth. 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Acesso em: 04 nov. 2009. Tradução livre da autora. ______. James Potter. Disponível em: . Acesso em: 04 nov. 2009. ANEXO A – LIVE JOURNAL - FOSFF Hello everyone.I finally had contact with Kimmy (Idaten), the current owner of FOSFF. While she remains very apologetic for not having contact with anyone for so long and the state of the site how it is, she has very good reason. I will not post all of the reasons for they are her business and kind of personal, I will post what you guys need to know concerning the site.Kimmy writes: Okay, let me explain what happened with the site. Our hosting provider got many notices that our standard notifications e-mails from FoS were being marked as spam. They wanted me to remove the person (I'm pretty sure it was only one) from our mailing list, but I didn't know how, so the site was taken down. I contacted Crys about it, just to make sure, and I was right that the site actually needs to be up and running in order for me to remove the user. They didn't like my explanation very much, but when I went into more detail about what our site does, they seemed more understanding. But now I have another bill to pay, and they won't bring the site back up until I pay the bill, which I won't be able to do until my next week's paycheck. So yeah. I know FoS has been down forever, but hopefully it'll be back up next week or so. And just to let you know, so you might spread the word somehow, I'm probably going to give up owenership of the site soon. Then she goes on to explain a few more personal details concerning why she hasn't been able to log onto the internet and make contact with anyone. Again, I will respect Kimmy's privacy and ask you do the same.As she finishes, she writes:--As much as I love FoS and would love to continue trying to improve it, I really no longer have the time or money to dedicate to it. So I would love it if there is someone else who wants to take ownership of the site. If not, the site might soon die, which I really don't want to happen. Thank you for your inquiry. I didn't want to worry everyone (though I guess perhaps they should), and I didn't know how to get into contact with anyone since the computer I generally use isn't yet able to work with our house connections. I still really want the best for the site, and apparently right now I'm incapable of providing what's necessary to sustain FoS. And once the site is running again, I'd like to focus on finding someone who will be able to provide for FoS. I know that some of you may be thinking, "Passing off the site again?" Yes, but Kimmy has good reason why she needs to. It's not my business, nor place to speak of it. I will let Kimmy, if she decides to, speak of it herself. I hope this has answered many of your guys' questions for it has answered mine. Kimmy, as she had written above, stated that she will be making the announcement again herself when the site is back up and running again. I suggest that whoever is serious about 175 taking the site speak up once Kimmy asks. But keep in mind that maintaining an archive (especially one with a huge community as FOSFF) is a lot of responsibility. Not to mention there are certain scripts/php/coding that you'll have to know to maintain said site as well as being able to fix it when it breaks.Any comments, questions or anything else, please comment on this entry1. Alô todo mundo. Finalmente entrei em contato com a Kimmy (Idaten), a atual dona do FoSFF. Embora ela peça muitas desculpas por não ter contato com ninguém há tanto tempo e pelo estado em que o site se encontra, ela tem bons motivos. Eu não vou postar os motivos porque eles são assunto dela e meio pessoais, vou postar o que vocês precisam saber no que se refere ao site. Kimmy escreveu: “Okay, deixem-me explicar o que aconteceu com o site. Nosso provedor recebeu muitos e-mails de notificações que o FoS estava sendo marcado como spam. Eles queriam que eu removesse a pessoa (tenho quase certeza de que era apenas um) da nossa lista de e-mails, mas eu não sabia como, então o site foi fechado. Eu contatei a Crys a esse respeito, só para me certificar, e eu estava certa, o site precisa estar no ar e funcionando para que eu possa remover o usuário. Eles não gostaram muito da minha explicação, mas quando eu entrei em detalhes sobre o que nosso site faz, eles pareceram mais compreensivos. Mas agora tenho uma nova conta para pagar e eles não vão colocar o site no ar até que eu pague a conta, o que eu não tenho condições de fazer antes de receber meu próximo salário. Então, é isso aí. Eu sei que o FoS estava do ar há muito tempo, mas espero que ele volte ao ar aí pela semana que vem. E gostaria de avisá-los, para que vocês divulguem de alguma maneira, eu provavelmente vou abrir mão da propriedade do site em breve”. Então, ela continua explicando mais alguns detalhes pessoais concernentes ao porquê de ela não ter condições de entrar na internet e fazer contato com ninguém. Mais uma vez, vou respeitar a privacidade da Kimmy e pedir a vocês que façam o mesmo. Ao terminar, ela escreve: “Por mais que eu ame o FoS e adorasse continuar tentando melhorá-lo, realmente não tenho mais o tempo e o dinheiro necessário para me dedicar a ele. Então, eu adoraria que houvesse mais alguém que pudesse ser o dono do site. Caso isso não ocorra, o site pode morrer logo, o que eu realmente não gostaria que acontecesse. Obrigada pelos seus questionamentos. Eu não queria preocupar todo mundo (embora, eu acho que talvez devesse) e eu não sabia como entrar em contato com ninguém uma vez que o computador que eu geralmente uso ainda não está em condições de funcionar com as conexões da nossa casa. Eu ainda realmente quero o melhor para o site e aparentemente, neste momento, não sou capaz de 1 LIVE JOURNAL. FOSFF. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2009. 176 fornecer o necessário para sustentá-lo. Uma vez que o site volte ao ar, gostaria de me focar em encontrar alguém que tenha condições de cuidar do FoS.” Eu sei que alguns de vocês devem estar pensando “passando o site adiante de novo?”. Sim, mas Kimmy tem uma boa razão pela qual precisa fazê-lo. Isso não é da minha conta, nem este é o lugar para se falar a este respeito. Vou deixar que a Kimmy, se assim o decidir, fale a este respeito ela mesma. Eu espero que isso tenha respondido muitas das perguntas de vocês, uma vez que respondeu as minhas. Kimmy, como ela mesma escreveu, fará o anúncio de quando o site estiver novamente no ar e em funcionamento. Sugiro que se alguém estiver pensando a sério em pegar o site, se pronuncie quando a Kimmy pedir. Mas esteja ciente de que manter um arquivo (especialmente uma enorme comunidade do tamanho do FOSFF) é muita responsabilidade. Sem contar que há certos scripts/php/códigos que você vai ter que conhecer para manter este site, bem como estar apto a consertá-lo quando ele quebrar. Quaisquer comentários, perguntas ou algo mais, por favor, comente nesse espaço. ANEXO B – TO MY DEAREST FRIENDS I need your help! The Daily Prophet has a rich and wonderful heritage; from tutoring and mentoring over 400 children worldwide in Creative Writing, to fighting for the rights of Harry Potter fansites through the now infamous boycott known as PotterWar. Our grand achievements have been recognized with numerous awards and international acclaim, and the history of our impact has been recorded in textbooks from the likes of The Massachusetts Institute of Technology and Stanford Law. We have accomplished so much under the name of Harry Potter, and although those accomplishments were long ago, they are not dead, nor are we. The next chapter of The Daily Prophet is waiting to be written, but it cannot happen without you. I have been negligent in my duties as webmistress far too long, not out of choice, but of necessity. I have spent the last decade of my life in and out of hospitals, always hoping that soon I would be well again and able to rebuild this community that has been a home and a haven to me. After many long years I have come to the conclusion that it is foolish to wait for hope any longer; it is clear to me now that I have to do my best to press on, despite the hand that Fate has dealt to me. It is for that reason that I have posted this letter to you all. I cannot do this without you. So many times in the past I have been buffeted by your support, your love, your patience, and your cooperation. I am asking for such favors again. I cannot stand idly while The Daily Prophet waits in the wings. It needs to come back now, and I need your help to do it. If you would be kind enough to help me one more time, perhaps together we could see The Daily Prophet brought back to life, and brought to a place where it can help and entertain so many more people than it ever has before. Here's what I need: I've long spoken of a plan for the next stage of The Daily Prophet. I'd still love to implement that plan, but am unable to do it myself. Therefore, I am seeking the assistance of a skilled and patient group of programmers who are capable of handling the implementation of a somewhat complex community publishing system. I have it all mapped out in my brain, and some of it on paper - other programmers have advised me in the past, so I know that it is possible, it will just take time, patience, and a bit of work. I'd like to put together a team of programmers, preferably with one programmer as technical manager. I'm afraid at this time I won't be able to offer you anything but my sincerest gratitude. However, The Daily Prophet is a registered, 178 tax-exempt 501(c)3 non-profit organization. Once the new community system is up and running, I will be applying for grants and donations from major organizations, so that hopefully I will be able to properly employ programmers full time - and hopefully repay those that have volunteered their efforts to make the system come to life. So although I cannot promise you money at this time, I can promise you that you will have a hand in the further development of an already internationally acclaimed organization, and that your work will be recognized by some of the highest and most respected individuals in the technological community (i.e. Lawrence Lessig, Philip Greenspun, Henry Jenkins, etc). If you're interested in lending a hand, or perhaps lending a few dollars, please email me directly at hlawver (at) gmail(dot)com - please include "Daily Prophet" in the headline, and you know what to do to make that email address functional. Or, if you aren't a programmer but still want to help in some way, keep an eye on this space! Hopefully soon we'll be looking for columnists, editors, moderators, and so on. One way or another, it would mean a great deal to me if anybody would like to do anything to help. The success of this community has always been dependent on those who have reached out a helping hand and nothing we have accomplished could have been done without you. For that I will be forever grateful, for The Daily Prophet has become so intertwined in my life that I cannot imagine living without it. It would mean the world to me to see it blossom yet again, and I know that it can't happen without you. Thank you so much for visiting and for taking the time to read this! To those of you who were columnists and friends in the past, my unending gratitude and love go out to you, wherever life has taken you since we parted. I think of you often and you will always have a place in my heart. Sincerely yours, Otherwise known as Heather L. Lawver Aos meus queridos amigos, Preciso da sua ajuda! O Daily Prophet tem uma rica e maravilhosa herança; de tutorar e aconselhar mais de 400 crianças de todo o mundo em Escrita Criativa, de lutar pelos direitos dos sites de fãs de Harry Potter durante o infame boicote agora conhecido como a Guerra de Harry Potter. Nossas grandes realizações foram reconhecidas com numerosos prêmios e aclamação 179 internacional e a história do nosso impacto tem sido registrada em livros publicados por estudiosos do Instituto de Tecnologia de Massachusetts e da Faculdade de Direito de Stanford. Nós realizamos tantas coisas sob o nome de Harry Potter e, embora essas realizações tenham acontecido há tanto tempo, elas não estão mortas, nem nós. O próximo capítulo do Daily Prophet está esperando para ser escrito, mas isso não acontecerá sem vocês. Eu tenho sido negligente nas minhas obrigações como webmistress por tempo demais, não por escolha, mas por necessidade. Passei a última década da minha vida entrando e saindo de hospitais, sempre na esperança de que em breve eu estaria bem novamente e em condições de reconstruir essa comunidade, que tem sido um lar e um paraíso para mim. Depois de muitos longos anos, cheguei à conclusão de que é tolice manter a esperança por muito mais tempo; está claro para mim agora que tenho de fazer o meu melhor para apurar, apesar da mão que o Destino lançou ao meu encontro. É por esta razão que eu postei esta carta para todos vocês. Não tenho como fazê-lo sem vocês. Tantas vezes no passado fui amparada pelo seu apoio, seu amor, sua paciência, e sua cooperação. Estou pedindo esses favores mais uma vez. Não posso ficar parada enquanto o Daily Prophet aguarda nos bastidores. Ele precisa voltar agora e eu preciso da sua ajuda para fazer isso. Se vocês puderem fazer a gentileza de me ajudar mais uma vez, talvez juntos nós possamos ver o Daily Prophet de volta à vida e levado a um lugar onde ele possa ajudar e entreter muito mais pessoas do que jamais o fizera. Aqui está o que eu preciso: eu já falei, há muito tempo, de um novo estágio para o Daily Prophet. Eu ainda adoraria implementar aquele programa, mas não posso fazê-lo eu mesma. Por isso, estou buscando a ajuda de um grupo habilidoso e paciente de programadores que sejam capazes de realizar a implementação de um sistema de publicação comunitário um pouco complexo. Eu tenho tudo planejado na minha cabeça e parcialmente no papel – outros programadores já me aconselharam anteriormente, então eu sei que é possível, apenas será necessário tempo, paciência e um pouco de trabalho. Eu gostaria de criar uma equipe de programadores, preferencialmente com um programador como sendo o gerente técnico. Temo que neste momento não tenha condições de lhes oferecer nada, além da minha sincera gratidão. Entretanto, o Daily Prophet é uma organização sem fins lucrativos registrada, isenta de impostos 501 ©3. Uma vez que a nova comunidade estiver em atividade eu realizarei a solicitação de doações de parte de grandes organizações, de forma que, se tudo der certo, poderei empregar programadores em tempo integral e, espero, pagar aqueles que ofereceram seus esforços de forma voluntária para fazer o sistema voltar à vida. Então, embora eu não possa lhes prometer dinheiro dessa vez, posso prometer que vocês terão como participar do desenvolvimento futuro de uma organização já internacionalmente aclamada e 180 que seu trabalho será reconhecido por alguns dos maiores e mais respeitados indivíduos da comunidade tecnológica (por exemplo Lawrence Lessing, Philip Greenspun, Henry Jenkins, etc). Se você estiver interessado em ajudar, ou talvez aprestar alguns dólares, por favor, me mande um e-mail diretamente para hlawver (at) gmail (dot) com – por favor, inclua “Daily Prophet” no assunto e você sabe o que fazer para tornar aquele endereço de email funcional. Ou, se você não for um programador mas ainda quiser ajudar de alguma forma, fique de olho nesse espaço! Com sorte em breve estaremos procurando por colunistas, editores, moderadores e assim por diante. De uma forma ou de outra, significaria muito para mim se qualquer um quisesse fazer alguma coisa para ajudar. O sucesso dessa comunidade sempre dependeu daqueles dentre vocês que estenderam uma mão amiga e nada do que nós realizamos poderia ter sido feito sem vocês. Por essas coisas eu serei eternamente grata, pois o Daily Prophet tornou-se tão entretecido com minha vida que não posso imaginar viver sem ele. Seria muito importante para mim vê-lo florescer novamente e eu sei que isso não tem como acontecer sem vocês. Obrigada por visitarem e pelo tempo empregado para ler até aqui! Para aqueles dentre vocês que foram colunistas e amigos no passado, minha gratidão infinda e meu amor para vocês, para onde quer que a vida tenha lhes levado, desde que nos separamos. Eu penso em vocês com frequência e vocês sempre terão um lugar no meu coração. Sinceramente, Megora P. MacGonagall Também conhecida como Heather L. Lawver. ANEXO C - WHEN DRACO MET HARRY Ilustração 17 – When Draco met Harry I Fonte: LIVE JOURNAL, 2009. 182 Ilustração 18 - When Draco met Harry II Fonte: LIVE JOURNAL, 2009. 183 Ilustração 19 – When Draco met Harry III Fonte: LIVE JOURNAL, 2009.